A tal ‘cláusula anti-rival’ é proibida pela lei, concretamente pelo artigo 19.º do Regime do Contrato de Trabalho do Praticante Desportivo Profissional: “São nulas as cláusulas inseridas em contrato de trabalho desportivo visando condicionar ou limitar a liberdade de trabalho do praticante desportivo após o termo do vínculo contratual.” Esta é uma questão pacífica entre juristas e não juristas (só não é consensual, consoante uma leitura menos ou mais literal da norma, se a nulidade se aplica também a cláusulas inseridas em acordos de revogação, ou se apenas a contratos de trabalho desportivo…Outra questão…ou talvez não…).
Assim sendo, como justificar tanta discussão e tanto impasse em torno da situação de João Mário? Confesso que não sei, nem tinha de saber, porque apenas conheço o que tenho lido na imprensa. Mas esse desconhecimento leva-me a equacionar algumas questões, aceitando o repto lançado para um modesto contributo em torno de uma questão que já tem mobilizado tantas opiniões. Mas faço-o com um óbvio ponto de partida: ter uma fatia do bolo no prato não significa ter o bolo todo. E muito menos conhecer os ingredientes ou a receita. É sempre um puzzle incompleto.
Da fatia de bolo que está no prato, retiro uma primeira convicção: não me parece sequer haver uma cláusula anti-rival no contrato de transferência entre a Sporting SAD e o Inter. Há sim a consagração do dever de o Inter comunicar, por escrito, à Sporting SAD ofertas que surjam pelo jogador provenientes de um qualquer “terceiro” clube/sociedade desportiva português (rival ou não). Se o Inter não cumprir o dever convencionado constitui-se na obrigação de pagar à Sporting SAD 30 milhões de euros. Esta, devidamente notificada, terá um direito de primeira recusa, um direito de preferência. Igualando a oferta, fica com João Mário. Mas, lê-se, “sujeito a aceitação do jogador”. Surge, de imediato, aqui, uma segunda convicção: tendo o jogador a última palavra, podendo, perante duas ofertas de emprego, escolher livremente o seu futuro profissional, não se coloca em crise a sua liberdade de trabalho...
Mas ficam-se por aqui as minhas convicções. Sobram dúvidas. E porquê? No essencial, porque, lá está, não conheço o resto do bolo nem os ingredientes com que foi concebido. Em todo o caso, gostaria de deixar algumas questões, necessariamente de forma sumária, que podem servir de extrapolação para casos semelhantes:
- Não é líquido que se aplique o citado artigo 19.º da nossa lei. É plausível que Inter e Sporting SAD tenham escolhido outra lei para regular o seu contrato. Ou até que tenham remetido para a regulamentação da FIFA. E mesmo que não o tenham feito, se um dia houvesse litígio, teria “dimensão internacional”, o que, caso a FIFA se considerasse competente para decidir, atenta a jurisprudência do CAS e a prática decisória dos órgãos da FIFA, afastaria a (primária) aplicação da lei portuguesa…
- Não conhecemos o contrato entre a Sporting SAD e o Inter na sua globalidade, pelo que interpretar uma ou duas cláusulas desgarradas da economia global do contrato, sem ler os seus considerandos e demais cláusulas, e sem conhecer os antecedentes pré-contratuais, pode levar a conclusões precipitadas, por falta de uma interpretação autêntica, por ausência de prova da real vontade das partes;
- Há ainda que, num contexto de coligação ou interdependência de contratos, conhecer também os termos do acordo de revogação contratual entre a Sporting SAD e João Mário, e o contrato de trabalho assinado entre João Mário e o Inter de Milão, passos dados em 2016 para o atleta deixar Alvalade e rumar a Itália. Dessa interpretação conjugada de três contratos, aliada também a tudo o que haja de pré-contratual, até pode ser, por exemplo, que se constate que os 30 milhões que muitos reputam de excessivos até sejam proporcionais. E mais: é fulcral saber quem propôs esta ou aquela regra - a SAD do Sporting? O Inter? O jogador (o próprio ou através de intermediário)? Tal clarifica os propósitos e pode inibir que um proponente venha agora pôr em causa a legalidade de anterior iniciativa sua (em abuso de direito). Julgo que é também preciso perceber se esta ou aquela cláusula é ou não a contrapartida para que possa ter ficado plasmada uma outra e se este ou aquele montante resulta ou não de um ajuste em função de um outro valor previsto numa outra cláusula contratual…
Claro está: mais questões podem ser colocadas. Em suma: o tema é doce e, gulosos que somos, temos tendência para ceder ao pecado da gula. Queremos o bolo todo. Mas atenção: creio que exceto as partes envolvidas e poucos mais, continuemos a ter somente uma fatia do bolo para degustar.
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