Devo dizer que a nota apontada no título não é apenas a minha opinião; analistas de todos os continentes consideram que a Vice-Presidente se saiu melhor do que o ex-Presidente. Mas, antes de entrar nas especificidades, vale a pena tecer algumas considerações.
A primeira, cientificamente comprovada, é que quem decide umas eleições são os indecisos (salvos os casos em que a diferença entre as partes é muito grande). Ou seja, os convertidos não vão mudar de opinião porque o já decidiram há muito em quem vão votar, aqueles que ainda não tem a certeza é que têm o poder de desequilibrar a balança.
Neste caso, em que as diferenças entre os candidatos e as propostas, para não dizer a visão do país, são tão notórias, pode parecer estranho que ainda haja quem tenha dúvidas do que quer para o seu país e para si próprio, porque o egoísmo e a carteira são os grandes motivos por trás de outros valores. Tudo se resume à questão “vou ficar melhor?” e, indiretamente, “o país vai para frente?”. Mas há sempre indecisos, por natureza, ou estupidez, e é com esses que se tem de contar.
Na conquista dos indecisos, Kamala esteve à frente porque prometeu coisas concretas: melhoria do nível de vida das classes médias e baixas, concórdia entre as partes e equilíbrio na imigração, e na inflação. Como é que isto vai ser feito, logo se verá. O que interessa por hora é a intenção e, sobretudo, a genuinidade com que ela é mostrada. Quanto a Trump, falou mais do que fez do que o que quer fazer. O que ele fez, já toda a gente sabe e, não há analista que não concorde, os americanos querem sobretudo mudar, virar a página sobre a incerteza e a agressividade dos últimos anos.
Como se lembram com certeza, Obama, um negro com nome muçulmano - duas limitações fortes para o eleitorado - ganhou com uma única palava: “Esperança”. Mais do que ações concretas, que aliás acabou por não realizar porque estava em minoria no Congresso, foi a perspectiva de melhorar que ganhou os eleitores. Kamala jogou exactamente a mesma cartada, um futuro promissor.
Um aspeto muito importante nos Estados Unidos, onde tudo é um espectáculo, é a aparência. Não me esqueço de ver, depois do debate entre Ronald Reagan e Jimmy Carter, uma novaiorquina, inquirida ao acaso na rua, afirmar: “Reagan esteve melhor comesticamente.” Quer dizer, o que a impressionou mais, para lá de todas as questões importantes, foi o “melhor aspeto” de Ronald, mais polido, mais brilhante, mais seguro de si.
No caso de ontem, Trump estava constrangido, quase apagado, “travado”, enquanto Harris se mostrou à vontade, incisiva, sorridente. Sim, sorridente, coisa nunca vista, sobretudo em Trump, sempre de sobrolho carregado.
Estas impressões contam. Como dizia Oscar Wilde, “só as pessoas muito superficiais não se preocupam com as aparências.” A simpatia é um argumento de peso.
Lembro-me também de ver, numa entrevista na televisão, Mark Read, director da WPP, a maior agência de publicidade do mundo, dizer, com uma frieza arrepiante que as pessoas compram os produtos porque gostam e depois arranjam desculpas lógicas para uma escolha emocional. Ou seja, gostam das cores da caixa de detergente, da estética, do layout, e justificam a compra pelo preço ou pelo estafado “lava mais branco”. É a tal cosmética.
Neste campo, também Kamala é melhor. Ainda jovem, enérgica, simpática, com um sorriso aberto e contagiante, toda ela tresanda um futuro brilhante. (Depois de Obama, a questão de raça já não se coloca. Aliás, num país latino ela nem seria considerada como negra.) Trump, à parte o seu colorido laranja, no mínimo estranho, está definitivamente mais velho, atrapalha-se nas palavras, nunca ri, só fala de desgraças e promete destruição.
Passando agora aos argumentos e propostas, que deveria ser o mais importante mas, como já vimos, não é, a diferença pode resumir-se a duas palavras, passado e futuro. Trump insiste em falar no passado, geralmente para alardear sucessos seus que até são mentiras, na “volta da América Grande”, nos valores de antigamente (Década de 1950? Época do racismo?), tudo pontuado com adjetivos superlativos que perderam a força pela repetição: “O maior Presidente de todos os tempos”, “os meus maravilhosos olhos azuis”, “sei mais disto ou daquilo do que toda a gente”.
Kamala fala no futuro: vamos fazer isto, melhorar aquilo, modificar aqueloutro. Se o fará, não se sabe - depende de muitos fatores, inclusive a maioria no Congresso - mas o horizonte é o nascer do sol, não a penumbra do ocaso.
Ainda no campo dos argumentos, Trump faz afirmações rocambolescas, obviamente falsas, como que a Covid se trata bebendo desinfetante, os imigrantes do Haiti andam a comer os gatos e cães das famílias (brancas) americanas, certos países estão a abrir as cadeias e enviar os violadores, dealers e criminosos para os Estados Unidos, Kamala é marxista, os democratas dirigem operações de pedofilia… A lista é surreal.
No caso concreto da economia, Trump defende uma taxa de importação de 100% nos produtos chineses, “que estão a destruir a nossa indústria”. Ora, todos os economistas, desde prémios Nobel, a mega empresa de capitais Goldman Sachs Group, até aos mais supérfluos achistas, concordam que uma taxa sobre essas importações significa um aumento directo e proporcional dos preços para o consumidor americano.
Finalmente, Trump propõe “a maior deportação de imigrantes da História dos Estados Unidos” - entre 10 e 20 milhões, conforme as estimativas. Se isso fosse possível, que não é, essa deportação fecharia sectores inteiros da economia americana, e causaria uma crise de consumo sem precedentes.
Kamala, que tem um histórico “fraco” nessa área - foi responsável pela imigração e não resolveu grande coisa - por um lado desvia a questão com alguma facilidade, por outro aponta para a desumanidade e impraticabilidade da solução.
Portanto, nas questões essenciais do emprego e da subida de nível de vida (graças a subsídios às famílias e pequenas empresas) as promessas da vice-presidente são muito mais reais e substantivas.
Finalmente, a questão do aborto. Trump tem variado as suas propostas, ciente de que é um tema em que está em grande desvantagem. Nos Estados Unidos, a interrupção voluntária da gravidez é vista como fazendo parte dos direitos das mulheres. Só as organizações religiosas e os fanáticos a vêem como uma questão moral. Trump, que organizou meticulosamente a reversão da decisão Roe v Wade que liberalizou o aborto, agora diz que a decisão compete aos Estados, dando aos mais reacionários a possibilidade de impedir 100% o aborto. Alguns até o proibem em caso de incesto, violação e perigo de vida da mãe. As mulheres mais pobres, que teriam de viajar milhares de quilómetros para ir a outro Estado abortar, são as mais prejudicadas. Mas todas elas, ricas e pobres, acham que os seus direitos estão a ser limitados.
Neste campo Kamala está completamente à vontade, uma vez que defende o aborto e todas as formas de prevenção contra a gravidez.
Vamos ver nos próximos dias qual o efeito do debate nas sondagens. Trump já disse que não quer outro debate, portanto este foi o único.
Talvez o debate tenha sido apenas um bom espetáculo, sem grandes efeitos eleitorais. Talvez não. Mas, desde que Kamala substituiu Biden, a dinâmica das eleições mudou completamente. Agora é um velhinho raivoso e já um bocado balbuciante contra uma mulher enérgica que sempre trabalhou como procuradora - uma lutadora.
Que dirão os eleitores? Bem, não esqueçamos a frase famosa do filósofo alemão Friedrich Schiller: “Contra a estupidez humana lutaram em vão os deuses do Olimpo!”.
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