Em 2008 M. Night Shyamalan  realizou um flop chamado “O Acontecimento”, do qual pouco me lembro. O que por sua vez não esqueço é o grande e ingrato risco que esse filme, tal como tantos outros posteriores a 2001, correu: filmar desespero colectivo depois do 11 de Setembro. Shyamalan até contrabandeava algumas referências visuais dos atentados para dentro do filme, mas falhava num ponto essencial. Refiro-me à insuficiência das reacções, a pantomina dum pânico brando que temos autoridade para desmascarar. É que somos todos sobreviventes do Nine/Eleven, exactamente na medida em que nenhum de nós lhe sobreviveu. Este Setembro que mudou o mundo desencadeou os consequentes Setembros de memoriais, quase impondo duas grandes sombras de torres sobre o calendário gregoriano que, a muito custo, vai resistindo ao ground-zero de novas cronologias.

Em consequência de tudo isto, trata-se também de um mês que me tem vindo a ensinar paciência, serenidade e até uma bonomia permissiva que passarei já de seguida a apelidar de outra forma. Chamemos os bois pelos nomes: é magnânimo que eu sou em Setembro, e isto porque me recuso a desamigar (termos facebookianos são o único novo acordo ortográfico que tolero) todo e qualquer simplório que aproveita a quadra para partilhar teorias da conspiração sobre o derrube das Twin Towers. A minha complacência é testada de forma dura, mas tem sido generosa a responder com silêncio; afinal quantas oportunidades destas é que a vida nos dá para sermos tão claramente magnânimos?

Se o caro leitor gosta de provas escaldantes provenientes de sites alojados em moradas manhosas (mais ilegítimas que os bastardos de Juan Carlos de Borbón), este cronista não é adequado para si, mas estende-lhe a mão.  Se sabe tudo acerca das vigas mestras do World Trade Center, priorados de Sião, illuminati, vida real dan-brownizada, este cronista coíbe-se de repreendê-lo; de certeza que a culpa não é só sua. Se partilha evidências escabrosas como se tivesse descoberto ouro, mas pica as ladainhas de sempre como quem garimpa pechisbeque, este cronista não o vai desamigar: é magnânimo. Andava há muitos Setembros para me gabar desta afectação régia. Agora que me deram a palavra, dificilmente podia deixar que outro Setembro passasse.

Chamem-lhe blues outonais, não me apetece mudar de assunto; seja pelas tragédias globais, as tragediazinhas da cretinice, ou sobretudo essa história do desespero colectivo que nos vai deixando versados e acostumados na mesma proporção. Na última década e meia ficámos desgarrados com a condolência apatetada de sermos agora viúvos uns dos outros. Tentamos refazer a vida em bailes ridículos, como se essa doença globalizada (contraída nas televisões em directo) não incapacitasse todos os baby boomers de Setembro de 2001. O problema nem é a falta de esperança – a esperança já tinha ido dar uma curva entre guerras mundiais e cortinas de ferro, ou encobrira-se atrás do papel de parede pardacento com que tapámos e renegámos essa esperançosa, mas altamente proscrita, decoração judaico-cristã das salas de estar ocidentais – o que me mói, e de alguma maneira justifica este texto, é o acanhamento imposto aos nossos exageros e dramatismos. Só num mundo cheio de maldades devastadoras, ou iminentes, é que as tragediazinhas subjectivas têm de ser contidas e ponderadas. Sei que isto parece um desabafo de menino mimado, mas não se enganem: o Mal será sempre vitorioso quando nos retira a capacidade de chorarmos por tudo e por nada. O “tudo” açambarcou os nossos reservatórios diluvianos e deixou o “nada” mais seco que o Alentejo em 2012.

Hoje tinha-me proposto a discorrer um pouco sobre o novo livro de José António Saraiva, mas a frase com que estava para abrir a crónica fez-me guinar noutra direcção: “Cresci numa casa com muitos livros” - assim o iniciava o meu texto -  apesar de ser factual, chegava aqui no invólucro mais irritante que conheço. “Cresci numa casa com muitos livros” é possivelmente a frase que fez azedar o maior número de autobiografias, como se anunciasse “Silêncio, que um detestável pedante vai falar!”. Enaltecer os privilégios culturais da nossa formação é um traço de pedantismo tão flagrante que me apetece chamar-lhe calamidade. Mas não posso, porque é Setembro. Em Setembro há a marca daquela grande calamidade literal que me fará sentir mesquinho se avanço para meras calamidades literárias. José António Saraiva que me perdoe a balda, mas abandoná-lo em favor de torres gémeas caídas era inevitável e natural; isto porque é no sentido de luto, não no de repugnância, que em Setembro vigora o meu nojo.

Para sair com alguma dignidade, avanço que a minha frase “Cresci numa casa com muitos livros” seria rematada com “mas não li quase nenhum dos que lá havia, nem tive grande vontade”. Chutava o pedantismo para canto e estabelecia a ponte com o “Eu e os Políticos”. Não li, nem tive grande vontade.

 

Sítios certos, lugares certos e o resto:

No DN, António Barreto e Pedro Tadeu põem o dedo em feridas jornalísticas, enquanto o Quarto Poder nos põe os dedos na garganta.

Fico muito contente por subscrever grande parte do que escreveu Manuel Carvalho no passado Domingo, pois custar-me-ia muito discordar dum artigo cujo título invoca uma canção de Leonard Cohen, ainda para mais escassos dias após esse titã ter completado 82 anos. 

O conceito de “Peresnão tem nada de inovador. Isso acaba por ser um trunfo, porque o recém estreado primeiro episódio destaca-se ao fazer resultar (na perfeição, diria) algumas fórmulas com historial de falhanço, ou amadorismo intratável, aqui em Portugal.

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