O SAPO24 noticiou no dia 27 de Fevereiro a sessão da Comissão, agora dominada pela maioria democrata na câmara baixa do Congresso. Mas, para lá do espectáculo mediático que foi a audição, há duas situações que é impossível ignorar. Uma é a atitude de Cohen, ao mostrar-se arrependido dos seus crimes e disposto a cooperar candidamente com a justiça; o ex-advogado (ex porque foi expulso pela Ordem) tem um historial das falcatruas e já foi apanhado em várias mentiras e contradições.
A outra situação, independente da categoria moral de Cohen, é o efeito provocado pelas suas declarações, que por um lado reforçam muitas suspeitas sobre o comportamento do Presidente americano, e por outro abrem novas vias de inquirição sobre as várias trapalhadas praticadas por membros do Governo (“Administração”, na terminologia americana).
Michael Cohen, advogado de 52 anos, trabalhou para o então empresário Donald Trump desde 2006, chegando a ser vice-presidente da Organização Trump e dando apoio jurídico, a título particular (ou seja, nunca fez parte do Governo). Foi um “resolvedor de problemas” (“fixer”, na gíria americana). A categoria de “fixer”, que ele próprio reconheceu, aplica-se àqueles assessores que resolvem problemas do patrão de uma maneira pouco ortodoxa, podendo envolver algumas tangentes com a ilegalidade.
Além do seu trabalho na Organização Trump, Cohen tinha negócios particulares. Movia-se num sector ligado a operações duvidosas, o chamado “gang das frotas de táxis”, que em Nova Iorque é dominado por imigrantes russos. Casado com uma ucraniana, filha de um dos chefes de frotas, com ligações à família Lucchese, levava uma vida luxuosa em apartamentos caros e guiava carros topo de gama.
Apesar de se saber que fazia “operações” menos claras em nome de Trump, a Comissão Muller não conseguia obter prova de situações específicas, até que deu com várias irregularidades no negócio dos táxis. Passou a informação para o Procurador Geral do Estado de Nova Iorque, que rapidamente juntou um conjunto de provas para o acusar de vários crimes, com a certeza de vários anos de prisão efectiva.
Para aliviar a pena inevitável, Cohen, que anteriormente dizia que “levaria um tiro” para proteger o Presidente, mudou de ideias e fez um acordo de denúncia (“plea bargain”) com a Procuradoria. Mas o seu testemunho tinha várias incongruências, o que lhe agravou a situação. Agora tinha pela frente longos anos de prisão. Resolveu então “contar” tudo à Comissão Mueller (que investiga uma eventual interferência da Rússia nas eleições presidenciais de 2016), em depoimentos à porta fechada.
Com a maioria dos Democratas na Câmara dos Representantes nas eleições intercalares do ano passado, e consequente controle das comissões especiais, era uma questão de tempo até ser chamado à Comissão de Supervisão e Reforma, que investiga actividades ilegais do Governo.
Entretanto já havia várias provas de irregularidades que o envolviam, como por exemplo o pagamento a duas namoradas de Trump para que os casos não viessem a público. O sistema, de que já aqui falamos a propósito do caso Bezos/Pecker consistia em pagar às raparigas artigos a contar as suas histórias na revista National Enquirer, artigos esses que nunca seriam publicados. A questão era de onde tinham vindo os fundos para a Enquirer comprar e matar (“catch and kill”) as histórias. Para lá do lado imoral, que parece não afectar Trump, havia a possibilidade do dinheiro vir da Comissão Eleitoral do futuro Presidente, o que constitui um crime.
Quanto ao papel de Cohen ao serviço de Trump, percebe-se bem pela seguinte história, contada pela revista online “Daily Beast”. Em 2015, a revista estava a investigar uma biografia de Trump de 1993, “The Lost Tycoon” em que a sua ex-mulher, Ivana Trump, o acusava de violação. Um dos repórteres telefonou ao Gabinete de Imprensa da campanha de Trump, mas o que recebeu de volta foi um telefonema de Cohen:
“Estou a avisá-lo, vá com muito cuidado, senão vou-lhe fazer uma coisa f... horrível. Está a perceber bem?”
Numa outra situação, Cohen enviou cartas às escolas que Trump tinha frequentado, ameaçando com “coisas horríveis” caso publicassem as notas e classificações obtidas pelo Presidente.
Quando Cohen se apresentou perante a Comissão, no dia 27 de fevereiro, muitas histórias já eram do domínio público, inclusive as dos pagamentos às raparigas. O que não se esperava era que Cohen, por sua própria conta, lesse uma declaração sobre o carácter de Trump. Entre outras coisas disse:
“O Presidente é um racista, um criminoso e um aldrabão” – assim, sem poupar palavras. E elaborou em vários temas:
“O Sr. Trump costumava dizer muitas vezes que a a sua campanha ia ser a maior campanha comercial da História da política. Nunca esperou ganhar as primárias. Nunca esperou ganhar a eleição presidencial. Para ele, as campanhas não passavam de oportunidades comerciais.”
“O Sr. Trump sabia das negociações para a construção da Torre Trump em Moscovo, dirigiu-as pessoalmente, e mentiu a toda a gente sobre isso. Mentiu porque não esperava ganhar as eleições e também porque acreditava que ia fazer centenas de milhões de dólares com aquele projecto imobiliário.”
“O Sr. Trump soube de Roger Stone, com antecedência, sobre os emails (da Comissão Eleitoral Democrata) revelados pelo WikiLeaks. O Sr. Stone disse ao Sr. Trump que tinha acabado de falar ao telefone com Julian Assange e que Assange lhe tinha contado que dentro de poucos dias seria publicada uma enorme quantidade de emails que iam causar estragos à campanha de Hillary Clinton. O Sr. Trump disse qualquer coisa como “Não vai ser fantástico?”
Por outro lado, Cohen afirmou que não sabia nada sobre um possível conluio entre os próximos de Trump e os russos. Apenas ouviu uma troca de palavras entre Trump Jr. e o pai que o levam a pensar que se referia ao famoso encontro na Trump Tower em que ele e Michael Flynn teriam aceite a influência dos russos nas eleições.
No que toca aos pagamentos à actriz Stormy Daniels, não fica nenhuma dúvida. O depoimento de Cohen, reforçado com fotocópias de cheques assinados por Trump, não deixa margem para dúvidas sobre o envolvimento do Presidente.
A Comissão é constituída por 24 democratas e 18 republicanos. Estes, muito logicamente, atacaram a credibilidade de Cohen, um auto-confesso mentiroso com um passado de criminalidade. Também salientaram que Cohen, embora tenha pelo menos três anos de prisão pela frente, já está a precaver o seu futuro, pois terá assinado acordos para um livro e um filme sobre a sua história.
Os democratas retrucaram que estas comissões sempre ouviram e usaram o testemunho de criminosos confessos, pois esses testemunhos, corroborados por outras provas, levaram à condenação de muitos bandidos, sobretudo mafiosos.
De facto, as afirmações concretas de Cohen – e não as suas opiniões de que Trump é racista, por exemplo – poderão ser confirmadas por outros testemunhos, ou não. Para já, a Comissão mandou chamar nada mais nada menos do que 81 indivíduos para esclarecer afirmações de Cohen e o que delas pode ser deduzido. Um dos testemunhos mais esperados é o de Allen Veisselberg, contabilista de Trump há 30 anos, e que já disse que colaboraria.
Os democratas não estão interessados, por hora, em falar diretamente dum possível impeachment do Presidente. Sabem que se se precipitarem, isto é, se não tiverem provas válidas, múltiplas e indesmentíveis, o processo poderá arrastar-se e, em última análise, favorecer Trump. Vão cozinhá-lo em fogo lento, digamos assim, com todas as comissões da Câmara dos Representantes a investigar todos os casos dúbios que o envolvem – a começar pelas declarações de IRS, que Trump nunca quis mostrar, e que agora é inevitável que apareçam.
Ao voltar de Hanoi, onde tinha ido para se encontrar com Kim Jong-um, Trump concentrou-se no livro que Cohen eventualmente irá publicar: “O Congresso deve exigir a transcrição do livro de Cohen, que foi entregue à editora há pouco tempo. As cabeças vão andar à volta quando virem as mentiras, interpretações e contradições com o que declarou na Comissão. É como se fosse outra pessoa! Completamente desacreditado!” E acrescentou outro tweet:
“O manuscrito vai mostrar que Cohen cometeu perjúrio numa escala nunca vista. Deve ter-se esquecido do livro quando prestou depoimento. O que tem a dizer sobre isto o advogado de Hillary Clinton, Lanny Davis? (Cohen) estará a ser pago pela Crooked Hillary, através do seu advogado?”
A única coisa concreta que se fica a saber por estes tweets é que Trump sabe o que está no futuro livro de Cohen, o que não deixa de ser estranho.
No estado actual do Governo americano, não há histórias simples e lineares. Tudo pode ser mentira ou verdade, e vai aparecendo como numa novela negra cheia de personagens suspeitas.
O que é certo é que os republicanos estão dispostos a defender Trump até ao fim. Fazem-no por múltiplas razões – satisfazer as suas bases, manter o partido no poder, agradar a Trump – e nada parece abalá-los.
Quando estavam a atacar a credibilidade de Cohen na Comissão, o republicano Jim Cooper perguntou a Cohen como é que tinha trabalhado para Trump durante dez anos, sabendo que ele é uma pessoa tão má. A resposta de Cohen, que pode ser desprezível, mas não é parvo, resume numa frase a situação do Partido Republicano:
“Fiz o mesmo que vocês andam a fazer há 10 anos. Protegi-o durante 10 anos, como vocês ainda o protegem agora.”
E arrematou com um aviso:
“Vejam o que me aconteceu a mim!”
A investigação do Procurador Especial Robert Mueller, que pretende averiguar se houve ou não “conluio” entre o grupo de Trump e os russos, não obteve nenhum pormenor concludente neste testemunho de Michael Cohen. Mas a investigação tem levantado muitas outras delinquências (o próprio Cohen foi apanhado), algumas das quais poderão ser até mais perigosas para Trump. Até agora, já houve acusações e/ou confissões de 37 pessoas, cinco delas muito próximas do Presidente. A “caça às bruxas”, como Trump lhe chama, tem mostrado com clareza que bruxas não faltam na actual Administração.Veremos que outros bruxedos saltarão para a luz do dia.
Comentários