Até agora, ou melhor até há cerca de uma semana, Bezos tinha uma presença discreta nos palcos das vaidades. Casado desde 1993 com a escritora MacKenzie Tuttle, levava uma vida bastante recatada, aparecendo sobretudo em eventos e entrevistas relacionados com o seu negócio.
À parte do sucesso da Amazon, que ninguém esperava e que foi deficitária durante anos, a actividade mais pública de Bezos foi a compra, em 2013, do “Washington Post”, um dos dois jornais mais icónicos dos Estados Unidos (o outro é o “New York Times”). O “Post”, como é familiarmente chamado, tem uma tradição de platina no jornalismo, tendo como ponto alto a cobertura do “Escândalo de Watergate”, que levou à demissão do Presidente Nixon.
Mas o “Post” estava, como a maioria dos órgãos de comunicação social escrita, em sérias dificuldades financeiras, a tentar o difícil equilíbrio de reduzir a redacção sem alterar a qualidade da investigação. A compra de Bezos foi um alívio, porque alguém que vale 20 mil milhões de dólares pode manter um grande jornal (quase) indefinidamente.
A sua primeira preocupação, ao reunir com a redacção, foi afirmar que a independência do noticiário estava assegurada. Segundo vários jornalistas que têm trabalhado no “Post”, Bezos de facto não interfere no editorial, que considera como a sua contribuição para uma sociedade mais democrática. Segundo o “New York Times”, Bezos, depois de comprar o “Post” por 250 milhões de dólares, contratou mais 200 jornalistas (actualmente são 900) e o jornal está com um milhão e meio de assinaturas digitais. Tem recebido prémios pelas suas investigações e é lucrativo há três anos.
Mas a compra do “Post”, que tem uma postura liberal, colocou Bezos na mira de Trump, que o vê como responsável pela crítica constante do jornal – que até mantém um “fact check” diário das mentiras do Presidente (8.158 falsidades nos primeiros dois anos). Para Trump não é concebível que os “ataques” do “Post” não sejam por ordem expressa de Bezos, e tem contra-atacado em inúmeros tuítes contra o jornal e contra a Amazon que, segundo ele, “explora os Correios com custos de transporte bonificados” (Falso. Na realidade, a Amazon tem ajudado substancialmente o deficitário serviço postal.)
No dia 9 de janeiro Bezos e Mackenzie anunciaram que se divorciavam, sem invocar razões e usando a habitual fórmula de que continuam bons amigos. Na comunicação social e viral os únicos comentários foram para o facto de que Mackenzie vai receber metade da fortuna do marido.
Tudo normal e institucional. Até que, a 7 de fevereiro, Bezos, que não costuma escrever em lado nenhum, fez uma publicação bombástica na plataforma Medium, acusando a revista de escândalos “National Enquirer” de o chantagear.
Convém esclarecer a diferença entre as revistas ditas “cor de rosa”, ou do “social” e as revistas de escândalos. As primeiras têm como política editorial não desagradar a ninguém. Qualquer notícia que saia, mesmo de um caso “picante” é com autorização ou consentimento tácito do visado. Não há insinuações, apenas situações, mostradas sem juízos de valor. As revistas de escândalos são exactamente o contrário: publicam exaustivamente notícias inconvenientes para os visados, contra a vontade ou com o desconhecimento dos próprios, para dos leitores de revistas expostas ao lado das caixas dos supermercados. De Tom Cruise ser um extraterrestre às actividades sexuais de Lady Gaga, vale tudo. A maioria dos “denunciados” nem sequer se preocupa em desmentir.
National Enquirer, o jornal que comprou a história de duas estrelas pornográficas para não as publicar
Mas a “National Enquirer” tem um lugar especial no inferno dos difamadores. Também usa o seu poder noticioso (342,071 exemplares em 2016) para objectivos políticos sub-reptícios. Presentemente admitiu cooperar com o Ministério Público, a troco de uma redução de pena, na investigação sobre pagamentos a duas estrelas pornográficas que teriam tido casos com o Presidente Trump.
O director da revista, David Pecker (o Mr. Pecker do artigo publicado por Jeff Bezos), na gíria americana é considerado um “sleazeball” (uma pessoa desprezível), é amigo pessoal de Trump e sabe-se que desde sempre o tem favorecido e protegido no seu “noticiário”. No caso concreto das duas senhoras, Pecker comprou as histórias delas para não as publicar – um processo que se chama “catch and kill”. Quem lhe passou o dinheiro para a mão foi Michael Cohen, o operacional do Presidente que já confessou a operação. O que os tribunais têm agora de decidir é se o dinheiro veio dos fundos da campanha eleitoral de Trump, o que é crime. Também toda a gente quer saber se Trump mandou fazer a transacção ou se foi uma iniciativa de Cohen, o que é pouco provável. Não seria criminoso, mas mais escandaloso para a imagem de Trump.
Então, no meio destes assuntos legais por que está a passar o “Enquirer”, Bezos publica candidamente um relato pormenorizado do que o jornal fez e ameaçou fazer. Uma parte já era pública; na edição posterior ao anúncio do divórcio amigável sem aparente razão, o tabloide publicou uma troca de mensagens de texto comprometedoras entre Bezos e Lauren Sanchez, uma “personalidade da tv”. O bilionário tinha uma amante!, noticiaram. Imediatamente a seguir, Trump, que tem uma tendência irresistível para piorar as coisas, tuitou: “Bozo foi atirado ao chão por um concorrente cujas informações, segundo me parece, são muito mais precisas do que as do jornal lobista dele, o Amazon Washington Post.” (Bozo, que quer dizer palhaço, e é como o Presidente chama Bezos.)
Claro que o tweet reforçou a certeza de que há uma relação política entre Pecker e Trump, precisamente numa altura em que isso não interessa nem a um nem a outro. Isto no dia seguinte a Trump ter dito que não sabia que o “Enquirer” estava a investigar a vida privada de Bezos.
No Medium, o dono da Amazon descreve passo a passo o que se passou: depois da publicação das mensagens, um director da A.M.I. (a empresa proprietária do Enquirer) enviou-lhe um email a sugerir que, se Bezos não declarasse publicamente que o jornal não tinha intenções políticas, publicaria fotografias comprometedoras, inclusive algumas que mostravam as partes íntimas dele e poses eróticas dela.
O argumento do “Enquirer” é que tudo o que se passe com o homem mais rico do mundo é notícia. O argumento de Bezos é que a sua vida privada só a ele interessa. O “Enquirer” justifica-se dizendo que os accionistas da Amazon precisam de saber que o seu maior proprietário troca os pés pelas mãos. Bezos responde que, tendo iniciado o negócio na sua garagem, em 23 anos chegou a um lucro trimestral de dois mil milhões de dólares, portanto os accionistas decerto que não estão preocupados.
Mas porque estaria o “Enquirer” tão preocupado que Bezos dissesse que a publicação das suas intimidades não tinha intenções políticas? Por um lado, porque, face a todo o contexto aqui descrito, é essa a percepção que a maior parte dos americanos tem do "National Enquirer". E não é só para agradar a Trump. É também para agradar aos sauditas. Mohammed bin Salman é um dos heróis do “Enquirer”, que passa constantemente informação sobre o príncipe, muita dela que se presume oriunda do próprio para promoção da sua imagem pública; o “Post”, que era onde trabalhava o jornalista Jamal Khashoggi assassinado na Turquia, no que a própria ONU já assumiu ter sido um plano perpetrado pelas autoridades sauditas, não poupa críticas ao que se passa no reino. Sabe-se que Pecker tem contactos com os sauditas e está a negociar um investimento para o jornal.
Bezos mandou investigar onde o tablóide obteve o material e chegou rapidamente a Michael Sanchez, irmão de Lauren, que por acaso pertence aos círculos de Trump. Segundo soube o jornal digital “Daily Beast”, Sanchez terá dito que sabia que o “Enquirer” andava à procura de material que “agradasse” a Trump.
À acusação de chantagem, o advogado da A.M.I., empresa do "National Enquirer", responde que mandou os emails a Bezos não para o ameaçar, mas para negociar “de boa fé”. Negociar o quê? E onde se pode falar de boa fé num mail que faz uma proposta aberta de troca de favores?
“Se uma pessoa como eu não pode defender-se numa situação destas, quem é que pode?”
Perante a chantagem, Bezos tomou a atitude inédita de contar ele próprio toda a história, incluindo os emails recebidos do “Enquirer”. E disse que ele próprio publicará as fotografias comprometedoras. Arremata com a questão: “Se uma pessoa como eu não pode defender-se numa situação destas, quem é que pode?” Ninguém, de facto, mas a sua atitude já pôs a circular histórias de outras personalidades que teriam igualmente sido chantageadas – e cederam, por não ter meios para se defender.
Segundo Stuart Green, professor de Direito na Universidade de Rutgers, será difícil para Bezos provar judicialmente que foi chantageado, uma vez que a lei define chantagem como algo destinado a obter uma vantagem pecuniária. O benefício que o “Enquirer” teria, não ser considerado como uma arma política do Presidente e dos sauditas, não é mensurável objectivamente. Não será um processo simples.
Contudo, também há a considerar o prejuízo que o “Enquirer” pode ter se deixar de ser considerado efectivamente um órgão de comunicação social.
Bezos não tem sido visto com bons olhos nos últimos anos; correm notícias de que paga mal aos seus empregados, lhes exige trabalho excessivo e metas absurdas de eficiência. Mas, neste caso, a opinião pública está do seu lado: um bilionário que defende um órgão de comunicação social legítimo e prestigiado e expõe as operações obscuras dum tablóide sem escrúpulos.
Não se sabe o que acontecerá; se Bezos sempre publica as suas próprias fotos, ou se mete o tablóide em tribunal. Mas, seja como for, tudo se pode resumir ao tweet de Kristin Kanthak, professora de ciências políticas da Universidade de Pittsburg: “Percebemos que estamos num período lamentável da vida do país quando um milionário que se propõe a publicar fotos das suas partes íntimas é o HERÓI da história.”
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