Pela primeira vez desde os acordos de paz de 1998 entre republicanos católicos (com tradição independentista) e unionistas protestantes (pró-britânicos), os republicanos estão ao comando do poder na Irlanda do Norte.
Com esta instalação do novo governo em Belfast chegam ao fim dois anos de impasse com a tensão provocada pelos unionistas, zangados com as consequências restritivas do Brexit para a Irlanda do Norte.
Esta parte norte (14mil km2, agora com 2 milhões de residentes) da ilha irlandesa ficou, em 1921, após a proclamação da independência da República da Irlanda, o território que permaneceu parte restante do Reino Unido na grande ilha vizinha. Mas com resistência independentista que se tornou armada e com episódios terroristas.
Foi a era dos “Troubles”, trinta anos de guerra civil que causou mais de 3 mil mortos e dezenas de milhares de feridos, com ataques desencadeados pelo IRA (Exército Republicano Irlandês, o exército republicano clandestino) em que entre outros, um membro da família real, Lord Mountbatten, tio do atual rei Carlos III, foi assassinado num atentado a bordo de um iate, e a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher escapou ilesa a um atentado num hotel.
Esse tempo dos “Troubles” chegou ao fim com o Acordo de Sexta-feira Santa, arrancado após muito delicada negociação e assinado na Páscoa de 1998.
É neste quadro que a nomeação de Michelle O’Neill está a ser vista como um momento altamente simbólico para os independentistas. Um século depois, uma independentista está ao comando em Belfast: “Que tal dia chegasse seria inimaginável para a geração dos meus pais e avós”, comentou, emocionada, Michelle O´Neill no discurso de posse.
Há que notar que a nova chefe do governo em Belfast está, nos temos do acordo, obrigada a partilhar o poder com a vice-primeira-ministra Emma Little-Pengelly, do Partido Democrático Unionista, pró-britânico. Nenhuma das partes pode governar e decidir sem o acordo da outra. O desafio à arte do compromisso é imenso e o risco de impasses é enorme.
Mas há uma nova era iniciada.
Duas evoluções aconteceram nas últimas três décadas que tornaram este momento possível. A primeira é a mudança demográfica: os separatistas católicos tornaram-se mais numerosos, porque têm mais filhos do que os protestantes, e é assim que nas eleições de 2022 o Sinn Féin emergiu como o maior partido da Irlanda do Norte, dando ao seu líder o direito de ter o cargo de primeiro-ministro, agora concretizado. A segunda das mudanças determinantes é o Brexit: enquanto a República da Irlanda e o Reino Unido fizeram parte da União Europeia, não fazia sentido insistir na secessão da Irlanda do Norte e na sua reunificação com a República da Irlanda, entre as duas partes Não havia fronteira na ilha, os habitantes podiam ter passaportes dos dois países, da Irlanda e do Reino Unido. Graças às complicadas negociações entre Londres e a UE sobre importação e exportação, essa fronteira não está ressuscitada, mas surgiu uma fronteira simbólica entre a Irlanda do Norte e o resto da Grã-Bretanha. É assim que os unionistas bloquearam a formação do novo governo da Irlanda do Norte durante dois anos. Mais uma ronda de complexas negociações permitiu a necessária instalação do governo em Belfast. Para os pró-britânicos, para além do desagrado com as regras comerciais negociadas por Londres, a atribuição o assento do primeiro-ministro a uma republicana católico tem forte significado de fim de era.
É um momento que, como ficou implícito no discurso da nova primeira-ministra, revigora o impulso para a reunificação da Irlanda, isto é, para que a Irlanda do Norte se solte do Reino Unido para se reunir com a República da Irlanda da qual faz parte na geografia insular.
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