Num mês com tanta escolha de eventos que provocaram esse estado de espírito, ver o PSD, o PS e o CDS clamando vitória nas presidenciais conseguiu ser das coisas mais deprimentes de Janeiro. Foi como se o leitor ficasse com os louros do assado que o seu cônjuge fez para o almoço de família, quando se limitou a não atrapalhar na cozinha. A vitória nas presidenciais não foi do PSD — que esteve ausente da campanha e que não teve hipótese senão apoiar à distância o presidente que parte do seu eleitorado acusa de ser brando com o governo —, nem sequer da direita: foi unicamente do agregador Marcelo e da sua plataforma centrista, abrangente, baseada na sua popularidade, reforçada pela necessidade de estabilidade.

Quanto ao PS diria que, nestas eleições, ganha timidamente, perde dramaticamente e até chega a empatar. Ganha timidamente porque apoiou de forma cínica o Marcelo, ganhando o governo alguns meses de crédito junto do presidente; perde dramaticamente porque não apresenta candidato, abrindo caminho para um segundo lugar da extrema-direita, que ocorreria não acontecesse a mobilização de eleitores à esquerda do PS para votar em Ana Gomes, e acaba por empatar porque a ascensão do Chega pode minar, baralhar e desfocar a oposição do PSD, conduzindo alguns moderados do partido da Lapa a migrar para o Rato. Mas mais do que sobre vencedores, o acto eleitoral de Domingo promoveu discussões sobre quem teria sido o obreiro do terceiro lugar de Ventura.

A ideia mais popular para explicar o fenómeno diz-nos que o resultado de André Ventura se deve, acima de tudo, a um êxodo dos eleitores do PCP, mormente no Alentejo. Em primeiro lugar, essa ideia carece de confirmação estatística. Depois, parte da ideia de que, no século XXI, prosperava ainda uma People's Republic of Alentejo onde quem não tivesse uma samarra com a cara de Vladimir Ilyich Ulianov não se podia sentar à sombra de sobreiros nacionalizados, ou molhar o pão em azeite da cooperativa. Uma vasta área do país em que se entoava A Internacional em cante alentejano e em que se planeia a revolução em cada Centro Cultural, Social e Recreativo de todas as aldeias — até chegar lá André Ventura.

Não só se acredita nessa realidade, como se vê com naturalidade que todo um eleitorado abandone um partido que defende o reforço do Serviço Nacional de Saúde, recuperar o controlo estatal de grandes empresas e o direito à habitação para aderir a um que defende o exacto oposto. O PCP tem perdido força eleitoral, sim. Mas perdeu-a nas últimas duas décadas — em que nunca esteve acima dos 8% em legislativas —, não nos últimos dois anos. E provavelmente por causa do surgimento do Bloco, não o do Chega. Mas o que importa é alimentar a narrativa dos “extremos que se tocam”, estabelecer uma relação entre os 12% de Ventura e um partido que não tem um candidato seu com 12% desde o ano da dissolução da URSS, e ilibar a direita de responsabilidades na alienação, fragmentação e radicalização do seu próprio eleitorado.

Quem descobriu, formou e lançou Ventura foi o PSD. Quem permitiu que ele ficasse tão perto de um segundo lugar numas Presidenciais foi o PS. Curiosamente, estes são também os dois partidos que governaram sempre desde o 25 de abril. Sendo assim, as famosas desencanto com os políticos do sistema, sensação de abandono e ressentimento com as elites, causas sobejamente apontadas para explicar a ascensão dos populismos, só podem ser imputadas aos partidos do centrão. Não são os partidos com poucos votos que fazem com que outros partidos com poucos votos ganhem muitos votos. São os partidos com muitos votos que os perdem.

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