Olá, eu sou o Homem Indignado. Um ser humano moderno do século XXI que interage com conteúdos de forma vanguardista. Não, eu não recorro à cultura para obter prazer. O prazer é para os fracos. Qualquer Homem Indignado que se preze já destruiu conscientemente toda a sensibilidade às coisas boas da vida. Que não restem dúvidas: o prazer morreu. Já não é possível entreter-me. Eu já só adquiro meios de entretenimento para alimentar aquela que é minha verdadeira missão no Mundo: irritar-me com merdas.

A irritação com merdas é a única joie de vivre legítima da contemporaneidade. É altamente desaconselhado a qualquer membro da sociedade gostar, comover-se, rir-se, identificar-se ou surpreender-se com qualquer tipo de produção cultural. O Homem Indignado deve saber à partida optar, com elevado critério, por ver, ler, ouvir aquilo que garantidamente desencadeie irritação. Tem de escudar-se de tudo aquilo que lhe possa motivar um sorriso, e tudo aquilo que não lhe dê a oportunidade de se zangar nas redes sociais deve ser consumido com parcimónia.

Acima de tudo, o Homem Indignado deve priorizar a sua verdadeira vocação: presentear as massas com a sua opinião. Nada o deve distrair deste desígnio, muito menos construções sociais antiquadas como o “conhecimento de causa”. Na nova era da emissão contínua de opiniões, o tempo do Homem Indignado é escasso. A leitura do livro em causa, o visionamento da série em debate, a pesquisa sobre o tema em discussão são fúteis e conservadoras barreiras que obstaculizam a necessária produção massiva de pontos de vista por parte do Homem Indignado.

Até porque absorver coisas de inimigos intelectuais pode prejudicar a higiene moral do Homem Indignado. O Homem Indignado seria incapaz de se rebaixar ao ponto de ler um artigo assinado por um autor com o qual discordou no passado; não visiona filmes de realizadores que não garantam por escrito serem boas pessoas; jamais ouviria a música de um cantor que com ele não partilhe a mesma opinião sobre política fiscal. Em boa verdade, no futuro, o Homem Indignado já não precisará de ler, ver ou ouvir o que quer que seja. A sua sensibilidade para encontrar antagonismos superficiais estará tão apurada que terá a capacidade para tirar a pinta a todo o tipo de obra apenas pelo título, pela sinopse ou até por quem a recomendou.

Se eu, Homem Indignado, tenho medo de que exponham aquilo que alguns chamariam uma farsa? Criticar, não ouvindo? Denunciar, não vendo? Desclassificar, não lendo? Nem pensar, já que toda a gente que interage comigo tem as mesmas pré-concepções do que eu. Eles também não ouviram, não viram, não leram pois não querem correr o risco de que a sua opinião articulada previamente seja posta em causa pelo confronto com a realidade. O Homem Indignado sabe rodear-se de intérpretes especulativos, iconoclastas invisuais, exegetas de pré-publicação. Fundamentalmente, emerge entre os comuns como um líder, por saber antecipar-se na confirmação daquilo que os seus pares já davam como confirmado.

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