[XXXII]

A dignidade das letras e as literaturas oficiais

I

Devo estas explicações ao público, e a mim mesmo sobretudo.

Sim: sobretudo a mim, à minha própria dignidade moral. Na hora em que eu não pudesse confessar sem receio ou vergonha, a esse severo juiz que todos temos dentro, os motivos de uma opinião, duma frase, duma palavra sequer, proferida numa ocasião grave; na hora em que me visse obrigado a ocultar à consciência, que julga e sentenceia, um só acto da inteligência, que pensa e determina — fosse embora aquela frase brilhante e aplaudida, fosse aquela determinação atrevida e admirada — eu é que não poderia nessa hora sentir nos lábios as doçuras do triunfo, mas só no coração todas as amarguras duma consciência perturbada, o fel da baixeza e da injustiça própria.

O público, esse, tem direito a perguntar‐me por que me levanto contra as imagens gloriosas ante que ele se inclina; por que não admiro o que ele ama; por que não respeito o que ele adora; por que me atrevo contra o voto das gentes e a opinião comum.

Estranho desacato, com efeito! Na pessoa de um dos seus escolhidos, ofendi eu toda a opinião, o juízo, o gosto, o sentir de quantos o tinham levantado sobre os braços e sentado na cadeira curul da autoridade e da glória. Reputaram‐lhe merecimentos dignos de admiração e de respeito. Eu, revoltando‐me, é como se dissesse ao respeito e admiração pública: «sois cegos e insensatos: enganais‐vos: o que a todos vos enleva e faz pasmar não é grande gigante, é só nuvem e fumo mentiroso...».

Isto é grave. É preciso firmar‐se quem disser isto em boas e sólidas razões, porque se não contradiz tanta gente só pelo gosto de contradizer.

Ao público devemos‐lhe isto; de lhe não falar senão em nome dalguma coisa alta, dalgum bom princípio, dalguma razão inabalável.

É o que a mim me acontece.

Se ao público e à consciência, que me interrogam pelos motivos de uma acção grave por mim praticada, eu não tivesse para responder senão paixões, capricho, vaidades, eu seria então, para aquele, quando muito, um iconoclasta atrevido mas sem nobreza nem razão, e, o que é pior, para esta um espírito escurecido, sem clarão de justiça, sem luz moral...

Nada disto acontece, porém. Interrogo‐me na austera serenidade do meu tribunal interior e acho‐me limpo e inocente. Não sacrifiquei ao orgulho, ao interesse, ao egoísmo da mais pequenina das vaidades — a vaidade literária. Nada disso. Falei verdade: e esta só palavra explica o silêncio, ou os desconcertos, piores ainda que o silêncio, daqueles a quem me dirigi; e, por outro lado, explica a serena constância com que me levanto de novo para sustentar, para confirmar os sentimentos, as ideias e as palavras que esse amor da justiça e da razão me inspirara.

A verdade tem, com efeito, isto de admirável: que só por si, invisível e deserdada, vale para o espírito de quem sinceramente a adoptou mais do que a adesão dos sábios, a aprovação dos prudentes, o aplauso das maiorias. Isolada e desconhecida, é ela contudo o mais forte esteio da consciência, porque só ela lhe oferece esta base inabalável — a convicção.

O mais que importa? Eis aí estão muitos dos que me animam e defendem que, aplaudindo‐me, foram tão injustos para comigo como os que me combatem, com as suas ignorantes apreciações. Aplaudiram uns a audácia da heresia literária; outros a firmeza dum golpe certeiro; aqueles folgaram com a satisfação de certos ódios que eu não conheço; estes com o abatimento de certas famas; todos, enfim, com o escândalo... Mas eu só tinha buscado o triunfo da verdade.

"É Desta Que Leio Isto"

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Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

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Não, meus senhores. Eu não tomei nas mãos o pendão de nenhum cor‐ rilho ambicioso, para o fazer triunfar em combates risíveis de palavras. Eu não pus a minha alma ao serviço das vaidades egoístas de nenhum grupo. Também não foi um turbulento espírito demagógico que me fez sair a campo procurando destruir alguma coisa só pelo amor da destruição. Menos, a presunção orgulhosa de gladiador novo, cuja audácia impaciente não conhece prudência e procura os mais robustos e aguerridos para o desafio e o combate. Menos ainda, o escândalo...

Não, meus amigos. Não vale realmente a pena comover‐se a gente quase até à veemência, indignar‐se quase até ao sofrimento, chamar a sua inteligência e o seu coração, só para responder com grandes frases a pequenos golpes de gente ainda mais ignorante do que malévola; para desacatar um dos ídolos de barro da religião burguesa contemporânea; para, enfim, fazer um escândalo... em Portugal! Nada disso. Graças ao deus da liberdade, não pertenço por ora a nenhuma escola além da escola do pensamento e da franqueza. Essa está ou pode estar em Coimbra como em Lisboa ou em Pequim — em toda a parte aonde estiver uma consciência leal. Das outras não curo eu. Parecem‐me refinadas em ritos complicados e doutrinas sub‐ tis de mais para esta minha rudeza inconveniente e até insocial. Não sei o caminho secreto de suas aulas. É por isso que as não defendo nem ataco: ignoro‐as.

Não foi isso, pois, o que eu intentei fazer desacatando a venerabilidade sacerdotal do sr. Castilho. Não foi defender uma escola, um grupo, uns homens. Foi só defender a liberdade e dignidade do pensamento, que nesse momento se ofendiam na chamada escola de Coimbra, no trabalho dalguns homens (bom ou mau, não curei de o saber) mas trabalho livre, independente, trabalho santo pois, e digno de respeito.

Isto assim parece‐me melhor e mais alto. Entendamos assim a questão. Só assim será justa, sagrada esta causa. Só assim terá infalível o triunfo.

Desta altura vê‐se muito, e muito longe. A perspectiva é clara e franca, e raro engana. Fica‐se firme e sereno como quem vê o verdadeiro aspecto das coisas. Como não houve ilusão não há lugar depois a negar, a reformar, a contradizer. O que se viu viu‐se por uma vez. O que se disse disse‐se por uma vez. A palavra toma ao carácter a sua segurança e energia. Não retira o que uma hora afirmou. É honrada.

Ora na conta de honrada tenho eu a minha. Por isso que me levantei em nome de ideias e não de coisas, de verdades e não de homens, por isso mesmo não tenho que sofrer da incerteza dos homens e das coisas. Condenei em nome de princípios: esses são eternos, e àquela sentença não lhe posso nem devo nem quero mudar uma linha, uma letra sequer.

Porquê? Eis a explicação que eu devo ao público. Por que persisto em acusar o sr. Castilho em nome deste grande princípio da liberdade do espírito? Por que lhe não aceito a autoridade? Por que o não sigo, antes aconselho a todos que lhe evitem o exemplo? Por que o não admiro nem respeito?

Cumpre explicar tudo isto. Os motivos que tenho satisfazem‐me as exigências duma consciência pouco afeita a branduras consigo mesma. Espero que satisfarão a de muitos. No caso contrário, consolar‐me‐ei com esta lembrança — que mais lealmente ninguém procurou a justiça e a razão neste pleito.

II

A dignidade do pensamento! Se desde Sócrates até Camilo Desmoulins, até Proudhon e Victor Hugo no exílio, tudo que em nome dela se tem sofrido não passasse duma questão de utilidade ou vaidade de pessoas, capricho e opinião de homens, dum lado como do outro, iguais os perseguidores e os perseguidos no princípio, e só diferentes na vária fortuna — nesse caso devíamos lamentar a humanidade, porque a sua maior virtude, como na blasfémia de Bruto, não passaria duma palavra.

Não é assim, felizmente. Esses tais tinham para lhes levantar a causa até às alturas duma causa humana, de interesse universal (tinham esses e têm todos os que preferem sofrer e combater a dobrar‐se ao mando de quem só tem autoridade do acaso, da fortuna duma posição oficial) uma coisa bem pequena ordinariamente no mundo, mas no espírito — e por isso na verdade — imensa, a maior de todas: a liberdade.

E pois foi em nome dela que eu vim falar, é por isso que não posso nem devo desdizer‐me.

Eu não daria um passo fora da minha porta para ir defender‐me diante dos que passam, convencê‐los da superioridade dos meus trabalhos, contar‐lhes os meus triunfos e os meus dissabores literários, falar dos meus amigos ou inimigos. Que vale isso? Mas para declarar que não há autoridade outra além da razão; outro critério mais que o sentir individual; que o pensamento e a meditação, se custam mais, por isso mesmo infinitamente mais valem que a obediência inerte e ininteligente; que mestre não há outro além do estudo, nem outro respeito deve haver além do culto da verdade — para declarar isto já vale a pena erguer a voz, porque se alguém nos quiser impor silêncio em nome dalgum interesse ou conveniência podemos sempre responder‐lhe: «Não; este interesse vai adiante de todos porque é o interesse soberano do espírito.»

Ubi spiritus ibi libertas, diz o apóstolo. São inseparáveis: como os gémeos Siameses não é possível cortar o laço vivo que os une sem que para logo corra o sangue e morram. Sem espírito não há liberdade: sem liberdade não há espírito. Ora este é a alma, a vida, a essência das literaturas, da poesia, da arte, de todo o trabalho do pensamento e da inspiração. Literatura que respeita mais os homens do que a santidade do pensamento, a independência da inspiração; que pede conselho às autoridades encartadas; que depende dum aceno de cabeça dos vizires académicos; essa literatura não é livre — ubi libertas ibi spiritus — não tem, logo, espírito, não é viva e poética... não existe pois como coisa alta e ideal, isto é, não existe, porque só ideal e alta se concebe literatura e poesia.

Bastava‐me isto só para condenar o sr. Castilho, as suas doutrinas, o seu procedimento. Se isto é verdade, se não há verdadeira poesia fora desta alta e digna independência, o sr. Castilho é o maior inimigo da poesia portuguesa porque quer matar nela aquilo mesmo que é a sua essência, a sua força, a sua vida...

Isto é um grande mal e uma grande injustiça. Protesto contra eles. E não só protesto como consciência individual mas como consciência co‐ lectiva; como homem e como cidadão; em nome das regalias do meu espírito e em nome do futuro do espírito nacional. Sim: fazer raquítica uma literatura, amputá‐la do que tem de mais vital, pô‐la engoiada e peca como um fruto seco antes ainda de maduro, isto é um crime público. Cuidais que é só roubar aos olhos ou aos ouvidos algumas cores ou alguns sons agradáveis? Privar‐nos dum divertimento, uma distracção futura? Não: é mais e muito pior. As literaturas, boas ou más, têm feito o destino do espírito das nações. Ora tudo vem do espírito. Pervertê‐lo é perverter a nação, é corromper as origens do futuro, é roubar ao presente a sua energia, a sua vida. Concebe‐se uma literatura banal, baixa, comum, ridícula, no meio de uma sociedade grande, nobre, forte, formosa? Uma reagiria sobre a outra e em breve lhe teria inoculado o vírus mortal da vulgaridade e da baixeza. Pelo livro, pelo teatro, pela crítica, pela conversa infiltraria essa peçonha em todos os vasos do corpo social, na família, na escola, no jornal, no parlamento, em casa, na rua, em toda a parte onde se lê ou fala, vê ou ouve, e em toda a parte educaria para o mal e para a vulgaridade os pensamentos a princípio, depois as vontades, os corações, tudo e todos por fim...

Os escritos e os escritores, as artes e os artistas, é que fazem a corrupção ou a grandeza das épocas. O cortesão Petrónio, os poetas sofistas e sensuais, a literatura material e aduladora da Roma dos Imperadores preparam, conservam e acostumam o povo a sofrer o despotismo, a crápula e a baixeza de seus senhores, a ser como eles baixo, crapuloso e violento. Ésquilo, pelo contrário, o poeta nobre e audaz, independente até à rudeza, é o contemporâneo de Salamina e Maratona, da época de maior grandeza, de maior elevação do espírito grego. O Canto de Roland, esse poema da altivez e do denodo, aparece no grande tempo espontâneo, libérrimo, da formação do mundo feudal, nesse grande esforço da Europa para constituir uma sociedade fundada toda na independência quase feroz do indivíduo. O chato e manhoso Poema de Renard, baixo e traiçoeiro, a Farsa de Pathelin, vilã e indigna, são obras contemporâneas do estabelecimento da tirania real, da destruição das comunas, do espírito de pequena prudência e cobardia que precedeu a Reforma e a Renascença. Os poetas cortesãos e convencionais de Luís XIV fazem esquecer à França a sua independência, doiram os grilhões que lhe lança aquele senhor despótico e orgulhoso. Pelo contrário, a literatura turbulenta do século XVIII, herética em Voltaire, plebeia em Rousseau, democrática em Diderot, eleva o espírito francês até àquela ebulição suficiente para conceber a grande obra dos tempos novos, a Revolução.

Sempre o espírito do lado da liberdade. Sempre a independência, como solo ubérrimo, deixando rebentar do seio as obras boas e fecundas. Sempre a dignidade, a irreverência pelos mestres e senhores, pelas autoridades oficiais, garantindo a verdade e elevação dos pensamentos e das palavras. «O mineiro quer os braços soltos para cavar buscando o oiro por entre as areias grossas. O piloto quer os olhos desvendados para ler nos astros o caminho da nau por entre as ondas incertas. O sacerdote quer o coração lim‐ po de paixões, de interesses, para aconselhar, guiar, julgar, imparcial e justo. O escritor quer o espírito livre de jugos, o pensamento livre de preconceitos e respeitos inúteis, o coração livre de vaidades, intemerato e incorruptível. Só assim serão grandes e fecundas as suas obras: só assim merecerá o lugar de censor entre os homens, porque o terá alcançado, não pelo favor das turbas injustas e inconscientes, ou pelo patronato degradante dos grandes e ilustres, mas elevando‐se naturalmente sobre todos pela ciência, pelo paciente estudo de si e dos outros, pela limpeza interior duma alma que só vê e busca o bem, o belo, o verdadeiro.» (Carta ao ex.mo sr. A. F. de Castilho.) Escrevamos afoitamente esta sentença do filósofo antigo — um grande escritor é antes de tudo um grande homem: o bom poeta pressupõe o homem de bem. — Ora concebe‐se, já não digo o grande homem, que nem todos podem ser, mas o homem de bem, que todo tem obrigação de ser, pedindo o auxílio de uma autoridade qualquer para pensar, consultando o termómetro da conveniência e aprovação dos mestres para falar, recebendo o santo e a senha como um soldado disciplinado, feito autómato e escravo na coisa espontânea e individual por excelência, o pensamento? Um homem de bem não faz isto: e toda a literatura que o faz é uma desonesta literatura.

É porque a essência, a coisa vital das literaturas não é a harmonia da for‐ ma, a perfeição exacta com que se realizam certos tipos convencionais o bem dito, o bem feito, um arranjo e uma curiosa faculdade feita para divertimento de ociosos e pasmo de quem não concebe nada acima dessas raras mas fúteis habilidades de prestidigitador. Para isso basta um certo jeito, uma arte delicada mas puramente exterior às grandes faculdades do espírito, um estudo especial e por única virtude a paciência. Se assim fosse, seguramente que se dispensavam todas as outras virtudes; a habilidade bastava; e podia‐se ser um grande escritor e, todavia, um homem pouco digno e nada altivo. Os poemas seriam nesse caso como pulseiras ou brincos admiráveis realmente, e que não requerem mais merecimentos em seus autores do que o desenvolvimento particular de certas faculdades e dispensam perfeitamente todo o cortejo dos grandes e excelentes dons, a hombridade, e o se‐ vero espírito que só fazem o verdadeiro homem.

Provada, porém, e admitida a diferença entre um bom ourives e um bom poeta, entre uns lavrados e delicadíssimos enfeites e um sentido e pensado poema, provada fica a necessidade que tem o ministério sagrado das letras de mais alguma virtude além dos dotes mecânicos e exteriores — isto é, a necessidade dum simples mas levantado espírito, duma livre inspiração, duma franqueza e independência extrema... de alma, para tudo dizer.

III

A alma! Sim: é dela que precisa toda a literatura que, em vez dos aplausos que passam e dos interesses que rebaixam, tivesse por única e nobilíssima ambição levantar, melhorar os espíritos abatidos, ir adiante mostrando os caminhos encobertos do bem, responder às necessidades morais do tempo, dar um alimento sadio e forte à ânsia, à fome e sede de saber e de sentir, ser enfim nacional e popular no grande e belo sentido da palavra.

Uma literatura assim compreenderia estas coisas: que toda a soltura e independência é pouca; que, se a tirania da moda e da opinião é insuportável, não o é menos a dos mestres e das reputações opressivas e orgulhosas; que, tendo‐se em vista dizer alguma coisa nova, descobrir, não copiar e repetir, bom é que haja liberdade de procurar, que não se perturbe nunca o pesquisador de bem e de verdade, ainda aquele que a pretende encontrar nos desvios mais arredados e estranhos; que se creia no possível e se respeite ainda o erro quando for filho dum desejo tão sincero e dum tão honroso empenho.

Ora isto é que não fazem as literaturas oficiais. Não concebem salvação fora do grémio estreito de suas igrejas, para não dizer capelas e oratórios. Não entendem outras palavras senão as poucas do seu dicionário incompleto e mutilado. Acham que o mundo está todo explorado, todas as ideias, todos os sentimentos, todas as formas, e que tudo isso o têm eles nas suas gavetas e nas suas pastas. Classificam de louco e de ignorante quem, aí dum canto, se levanta e pretende ter achado alguma coisa nova — ainda que não seja senão um seixo descolorido ou uma erva rasteira. Querem que se olhe para o mundo através das vidraças dos seus gabinetes e se veja reflectido todo o céu no fundo dos seus tinteiros...

Isto assim pode ser que seja útil, fácil, vantajoso; pode ser que assim se conquiste a opinião das maiorias boçais, que dão a fama, ou o favor das minorias inteligentes, que dão alguma coisa melhor do que a fama, que dão a importância, o interesse e o poder... Pode ser que seja hábil isto e até profundo — só não é nem digno nem verdadeiro.

Mas são assim as literaturas oficiais, governamentais, subsidiadas, pensionadas, rendosas, para quem o pensamento é um ínfimo meio e não um fim grande e exclusivo; para quem as ideias são uns instrumentos de fortuna mundana, uma ocasião mais de sacrificar às pequenas ou más paixões, em vez de serem uma fortaleza aonde se guardem do contacto das impurezas e das misérias; para quem esta santa tribuna da palavra não passa dum mar‐ co de onde lancem o pregão de vergonhosos leilões; para quem a glória é uma especulação feliz, não uma sagrada palma que é preciso colher com mãos puras; para quem, enfim, nobreza, desinteresse, ideal, sinceridade, sacrifício, são apenas boas e sonoras palavras, feitas para levantar o período e encher a frase, elegantes, brilhantes, excelentes para tudo... menos para se tomarem a sério. São assim as literaturas oficiais; e, o que é maís, não podem ser doutro modo. A fatalidade de seus princípios impõe‐lhes necessariamente estas tristes consequências. Como não buscam a verdade pela verdade, a beleza pela beleza, mas só a verdade pelo prémio e a beleza pelo aplauso, têm de as renegar tantas vezes quantas a beleza não agradar aos olhos embaciados da turba que aplaude, e a verdade ofender os senhores que premeiam e recompensam. Ora, quantas vezes num século premeiam os senhores a verdade sincera e inteira? Quantas vezes aplaudem as turbas sensuais e ininteligentes a formosura ideal, límpida e simples?

Mas quanto mais fogem das ideias tanto mais respeitam e adoram as coisas. Quanto mais ignoram os princípios, os inflexíveis princípios que não se vêem nem rendem nem louvam, impassíveis e pobríssimos, tanto menos se atrevem contra os homens, os homens que vêem perfeitamente as genuflexões e as agradecem e galardoam, que ouvem distintamente as lisonjas e se dobram e torcem, os homens maleáveis, os homens exploráveis, ricos em aplauso e mesmo em dinheiro... Como não têm no coração uma voz eterna, uma inspiração que os leve no seu caminho, sob pena de não andarem, têm de seguir alguém, os passos dalgum ser privilegiado que lhes faça as vezes de consciência, de ciência e de crítica. Como não têm um credo, têm de ter um Papa cuja pessoa sagrada sirva de doutrina, de crença, de fé. Como não têm bandeira em volta de que se ajuntem todos iguais e livres, precisam então dum chefe, um general muito condecorado, muito dourado, muito fardado, envolto todo em fitas, comendas, galões, um fetiche, um ídolo que só por si faça as vezes de pendão, de palavra sagrada, de ideia, de tudo...

É assim que nascem as realezas literárias. Nascem dum vício, como todas as realezas. Nascem para o mal dos homens, para o abaixamento das almas, como todas as autoridades, todos os poderes desnecessários. Mas estas são piores e dum mais pernicioso efeito. As outras oprimem os corpos, as coisas da matéria, as fazendas, os interesses: mas estas tiranizam o pensamento, as ideias, o espírito. Estas é que são as verdadeiras, as detestáveis tiranias. As outras podem deixar‐nos aí a um canto, sem tecto, sem lar, sem dinheiro, nus e ao frio. Mas isso satisfá‐las: e esse miserável nu pode livremente pensar, cismar, ter a opinião que lhe convier e um mundo interior tão belo como aquele de que o privam os opressores: pode, diz muito bem Michelet, chamar‐se o escravo Epicteto. Mas estas opressões do espírito, ainda que nos dessem, como falsa compensação, casas, riquezas, servos, luxo e brilho, deixavam‐nos tão escravos e miseráveis como dantes, sem liberdade interior, sem capacidade para pensar, julgar por nós mesmos, moralmente paralíticos. Quem, ainda no meio das maiores grandezas, não pode senão amar, admirar coisas pequenas e mesquinhas, que é senão mesquinho e pequeno? Quem, ainda no país mais livre, obedecer sem reflexão ao aceno dalguém, o que é senão escravo? Os tiranos da matéria deixam‐nos pobres e desabrigados: estes do espírito fazem‐nos baixos e estúpidos — qual é preferível? E não me digam que uso de grandes palavras numa pequena questão; que invoco os maiores santos numa ocasião de tão pouco perigo. Não é assim. Tanto se sofre duma pedrada atirando‐se‐nos com um seixo como com uma pedra preciosa. Que importa que a violência que se faz à alma seja dum ou doutro modo, numa grande ou numa pequena coisa? Todas as liberdades são solidárias: e o que as faz boas e estimáveis não é o darem‐se num caso e não noutro, mas no facto mesmo da liberdade. Também são solidárias todas as opressões; e o que as faz péssimas e detestáveis não é virem duma ou outra mão, pesarem num lado ou no outro, mas somente o facto da tirania. Não há pequenas opressões, pequenas injustiças, pequenas misérias. Há só misérias, injustiças e opressões. Todas são más e desprezíveis.

Livro: "PROSAS I"

Autor: Antero de Quental

Editora: Tinta-da-China

Data de Lançamento: 6 de fevereiro de 2025

Preço: € 29,90

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E, depois, a literatura será coisa tão pequena, tão indiferente e secundária? Será [de] tão mínimo interesse, que aqueles mesmos que não sofrem a menor vexação, a menor violência, nesse ponto tolerem ou nem sequer sintam o mal e as durezas do jugo? Será coisa sem consequências o pensamento escrito, o teatro, o livro, o romance, a poesia, que não valha ao menos a pena indagar por que mãos andem, quem é que pretende explicar os sentimentos e as ideias, quem forma o gosto bom ou mau, quem critica e organiza a opinião, quem faz tudo isto e com que direito?

Lembremo‐nos que a literatura, porque se dirige ao coração, à inteligência, à imaginação e até aos sentidos, toma o homem por todos os lados; toca por isso em todos os interesses, todas as ideias, todos os sentimentos; influi no indivíduo como na sociedade, na família como na praça pública; dispõe os espíritos; determina certas correntes de opinião; combate ou abre caminho a certas tendências; e não é muito dizer que é ela quem prepara o berço aonde se há‐de receber esse misterioso filho do tempo — o futuro.

É ele, com efeito, quem as literaturas convencionais e falsas comprometem. A pequenez e estreiteza de espírito que as caracteriza, o acanhamento de seus juízos, a incerteza e indecisão de seus princípios, a banalidade, o comum de suas criações, e sobretudo o seu servilismo e miséria moral caem, como um veneno, no sangue das gerações nascentes, corrompem‐no logo a princípio, e o futuro, de belo e forte que Deus o tinha preparado, sai raquítico, incerto, fraco, triste, baixo e apto para sofrer todas as misérias e todas as servidões.

Porventura não foi a literatura picaresca, céptica e sem brios, que entorpecendo com o espesso vapor de nauseabundas banalidades a alma audaz dos espanhóis, lhes fez sofrer resignados a opressão austríaca, o reinado infame de Carlos V, Filipe II e a Inquisição, e comprometeu por séculos a causa da civilização na Espanha?

IV

Ah! antes mil vezes o excesso, a extravagância mesmo, a desregrada audácia, a petulância aventureira de concepções e formas, o abuso da liberdade, enfim, do que esta estreita e pequena prudência; do que esta submissão ininteligente, este temor de cego que não anda com medo de cair e, como não vê, por isso se dispensa de falar em luz; do que o acanhamento intelectual que é uma prova ou um motivo de entorpecimento moral e este culto do vulgar, do rasteiro, das ideias ao alcance dos que não sabem pensar e dos sentimentos acessíveis aos que não têm alma; do que, finalmente, esta morna, adocicada e nauseabunda atmosfera artificial que nos querem fazer respirar como se fosse o ar livre, extenso e forte da vida do espírito. — Isto não faz doidos, seguramente, porque a doidice é ainda uma energia, e isto é mortal e inerte. Não faz extravagantes, porque a extravagância supõe ao menos um desejo de subir e elevar‐se, e isto é tacanho e ordinário como um anúncio mercantil. Não faz as Lélias e as Pulquérias ultra‐românticas e ardentes, mas cria as Emas piegas, sem alma e sem sentidos, tão pouco virtuosas como as outras e sem ao menos terem como elas uma desculpa nos delírios dum espírito excessivo mas nobre, ou nas excitações dum sangue de bacante, mas vivo em todo o caso. As literaturas oficiais, realistas e banais não fazem destas extravagâncias, que ao menos têm a elevação e toda a poesia da febre e do delírio. Mas produzem a imbecilidade, a baixeza, a vulgaridade — sem por isso serem mais virtuosas...

Isto é um pouco pior, cuido eu. Há nas extravagâncias da exaltação alguma coisa nobre e aspiradora de melhor, que, ainda quando sorrimos, nos faz pensar que é um coração desregrado sim mas vivo que inspira essas doidices. Mas nem ao menos ter por desculpa uma generosa loucura; errar, mas errar a sangue‐frio; ser falso reflectida e prudentemente — isto é que é ter plena consciência da sua miséria, é comprazer‐se nela e habitar alegre no seu nada como se fosse o mais rico palácio!

É certo que se não é estranho, confuso, visionário; mas não é porque pela verdade se chegasse à simplicidade, pela elevação se alcançasse aquele ponto sublime que parece à primeira vista fácil e corrente. Não é por isso; mas simplesmente porque se abstrai do pensamento, ocasião de confusões, da fantasia, origem de estranhas visões, do sentimento, causador de ímpetos apaixonados; exactamente como aqueles que jamais escorregaram ou caíram nos precipícios da montanha, não porque são fortes e resolutos, mas só porque nunca saíram de ao pé do lar doméstico, entre as mulheres, quentes e satisfeitos...

Mas esta é a dura fatalidade das literaturas que sacrificam ao ídolo vulgar do favor público e não às aras severas da consciência, do pensamento isolado mas enérgico. Como é a fama que procuram, passam ao lado da verdade e não a vêem nem a conhecem sequer. Servem um senhor caprichoso e grosseiro: têm de lhe oferecer umas vezes manjares acres e ardentes que estimulem a sua rude sensualidade, outras, pelo contrário, as mais refinadas e requintadas iguarias com que lisonjeiem o seu extravagante sibaritismo de bárbaro. Jamais a nutrição simples mas sadia, forte sem ser grosseira, pura sem ser requintada. Essa não a quer ele, excessivo, cheio dos mais contraditórios caprichos, como criança perdida de mimos ou sultão a quem nunca uma contrariedade educou para a paciência e a verdade.

Esta, a verdade, quer só dar‐se a quem a procura por amor, exclusivamente por sua formosura, não pelo aplauso ou pelo preço que possa render. Ora isto é o que não podem fazer as literaturas oficiais. Seria renegar o seu mesmo princípio, o culto da opinião, e o seu fim, os bravos de momento, o triunfo ruidoso mas efémero das praças públicas. Falam às maiorias, têm de ser comuns. Dirigem‐se ao vulgo, têm de ser vulgares. Especulam com as paixões públicas, têm de as aceitar e lisonjear. Dependem dos ídolos do dia, têm de os incensar. Recolhem juro dos prejuízos e ilusões nacionais, têm de conservar esse capital rendoso. Têm por infalível pontífice o juízo popular, não podem renegar de suas doutrinas, seus dogmas, seus cultos. Hão‐de ir sempre ao nível do espírito público, do pensar das maiorias: nunca acima. Serão entendidos, aplaudidos, estimados. Nunca, porém, elevarão, nunca hão‐de ensinar, nunca hão‐de mostrar mais do que pode ver qualquer dos que estão no meio da turba...

As nações, porém, é que têm direito a exigir dos que falam no meio delas alguma palavra melhor ou maior do que as usadas e costumadas palavras de todos e de todos os dias. Por que razão, com efeito, levantar‐se no meio dos homens, chamá‐los em volta de si, para não dizer mais nem melhor do que eles sabem, pensam e dizem? As nações têm um instinto secreto ainda que confuso de seus destinos e do que para o cumprimento deles convém. Se um momento aplaudem quem as lisonjeia, em breve desprezam e esquecem. Para amar precisam odiar primeiro. Aqueles cujos nomes têm de gravar no coração, não são os aduladores, são os amigos sinceros e independentes, que lhes dizem as verdades em toda a sua dolorosa mas salutar crueza. São os Proudhons, os Larras, os Herculanos: não os Castilhos, os Martinez de la Rosa, os Sainte‐Beuve. Estes, porque são das academias, dos conselhos reais, dos senados, dos altos cargos, é por isso mesmo que não são nem do povo nem da nação. Ele, o povo, quer que o eduquem, que o melhorem, que o repreendam. Quer obras severas, graves, sérias, fortes; não brincos de crianças, distracções de ociosos, entretenimentos de fúteis — porque ele trabalha e não o consolam nem aliviam essas polidas mas ocas ninharias. Sabe que é ignorante e quer que o alumiem, que o castiguem às vezes: o seu bom senso desconfia dos que o adulam e chamam sábio e inspirado. Uma literatura cortesã, convencional, respeitadora de todas as conveniências, menos da verdade, só pode ser aplaudida pela multidão dos ociosos, dos banais, cujo mau gosto iludem as aparências de estilo, melodias de forma e exterioridades.

O povo, a verdadeira nação, isto é, os homens que sentem e os homens que pensam, esses não têm simpatia nem admiração pelos formosos sofismas duma arte brilhantemente estéril, que só serve para entorpecer o espírito adormecendo‐o ao som de um canto doce mas fraco, sensual e sem altura. Esses não prezam a retórica, mas só o pensamento. Não amam a poética; basta‐lhes a poesia. Não querem ser divertidos, mas somente ensinados e melhorados.

V

Ah! mas nesta terra, em tempo fecunda e santa e agora fria e estéril, a esta gente outrora nobre e altiva e hoje baixa e envilecida, a esta gente e nesta terra é que era fazer ouvir as grandes palavras de esperança, de coragem e de fé! Levantar esses ânimos incertos e caídos, animar esses corações descrentes, aquecer com um fogo vivo de amor, de sentido e ardente amor, esse sangue meio regelado, esses peitos que esfriam de desalento, alumiar esses olhos que o desgosto embacia e essas almas ainda mais baças pelos crepúsculos dum espantoso abaixamento de luz moral! Aqui é que era fazer triunfar o espírito, pondo‐o tão alto que fosse um como sol a aquecer, a alumiar uma terra e uma gente que, ao sentir faltar‐lhe o mundo, soubesse tirar daquele só astro o calor e a luz para a vida, e no isolamento da decadência, fizesse nova pátria, mais rica e formosa, da virtude e da nobreza!

Nunca literatura alguma teve obrigação de ser elevada, grave, séria, desambiciosa, como a literatura deste povo decadente, cujas últimas misérias aí estão para inspirar a compaixão ou o desespero, a dedicação ou a blasfémia, o amor ou o insulto, tudo, menos os pequenos sentimentos do interesse pessoal e da vaidade. Oh! quem se pode lembrar de especular com os últimos alentos dum moribundo? quem pode folgar com a ruína de um grande e formoso edifício que desaba, só porque nesta queda aproveite algumas pedras para fazer um muro à sua horta? quem se consola de ver retalhado o manto nobre de um grande rei só porque uma nesga lhe pode servir para os seus usos domésticos?

É isto, todavia, o que tem feito e o que faz ainda a nossa literatura oficial. Ri, graceja, cisma, murmura, fantasia, procura rimas bonitas, desenterra palavras obsoletas e construções exóticas de frase, diverte‐se e cuida divertir‐nos, no meio de um grande luto nacional, numa hora das mais solenes deste povo... Quando, no meio da triste dissolução do passado, a alma portuguesa incerta e vaga procura um caminho novo, hesita e está em perigo de se assentar, cheia de dor nalgum marco isolado e deixar‐se aí finar de desgosto, é nesta hora que a nossa literatura que se diz nacional não acha, para a confortar, esclarecer, animar, conduzir, uma só palavra viva, um só sentimento profundo, uma alta ideia, ao menos uma lágrima bem triste, nada... só frases, rimas, estilos, palavras — words, words, words...

Havia um grande exemplo de meditação a dar ao povo — e vemos a futilidade entronizada. Havia um grande exemplo de patriotismo — e vemos o desamor e a indiferença premiados. Havia um grande exemplo de desinteresse e independência — e não vemos senão cortesias, genuflexões, reverências, baixezas... Ah! com a mão na consciência, será isto bastante para constituir a literatura, isto é, o pensamento, a alma duma nação? Eu pergunto‐o aos homens de bem, que ainda não coram deste nome honradíssimo de patriotas, que ainda não acharam ser coisa de bom gosto o cepticismo, a indiferença e o desprezo da pátria e dos cidadãos. A esses pergunto: representam realmente o espírito deste povo a futilidade, o desamor e a baixeza? Será assim o coração desta gente toda, que os que se dizem intérpretes de seus sentimentos não achem lá senão o vácuo e inanidade moral?

A consciência da nação, da parte honrada, séria e realmente viva dela, responde‐me que não. Não me respondem, seguramente, os especuladores da capital, os cépticos da moda, que esses não sabem senão rir com um riso baixo e ininteligente, que compunge mais ainda que as lágrimas. Mas eu não falo com eles. Esses entendem que o povo está bom e é forte ainda e próspero por isso que ainda pode pagar. Para esses a missão das letras está cumprida com meia dúzia de folhetins e alguns romances insípidos quando não imoralíssimos. Mas a nação, a nação verdadeira, não sois vós, senhores do funcionalismo, parasitas, ociosos, improdutivos. A nação portuguesa são três milhões de homens que trabalham, suam, produzem, activos e honrados, que vivem não segundo a moral dos especuladores, mas segundo a lei do dever e da consciência. Esse, o verdadeiro povo, tanto aprova os vossos feitos e os vossos dizeres, que não conhece os vossos governos senão para os maldizer, e aos vossos grandes homens, aos homens de convenção, nem sequer lhes sabe os nomes obscuros a três léguas de distância das vossas academias e das vossas redacções...

Oh! meus pobres amigos da província! pobres homens que sois os que trabalhais e fecundais o solo, cujo melhor fruto devoram esses senhores inúteis; que sois honestos e bons; que tendes no coração os restos do sentir português que há ainda nesta terra! Homens sinceros das vilas, das aldeias, dos campos, das lavoiras, dos trabalhos; dizei‐me quantas vezes tendes feito parar o arado no meio de um rego para recordar as glórias oficiais, que as gazetas recomendam, e exultar com elas, e consolados por esta lembrança continuar mais enérgicos e alegres?

Lembro‐me de vós e dos vossos rudes labores, das lidas fadigosas que vos consomem as honradas e modestas vidas! Por vós e pela vossa causa sofro contente os risos insultuosos, os desdéns e as injustiças, porque vós tendes direito a alguma coisa melhor do que requebros de frase, algumas lições mais altas do que os exemplos de conivência com as torpezas e as abjecções do tempo, a alguma doutrina mais consoladora do que a resignação e a condescendência com as loucuras da época, a alguma moral mais santa do que o amor sensual e exclusivo da forma, do som, das palavras ocas e esterilmente harmoniosas!

Vós, porque pagais, nutris, sustentais toda essa gente, tendes direito a que em troca vos dêem belos e bons pensamentos, santas inspirações, crenças, confortos, luz e fé.

As literaturas oficiais serão tudo e de todos — do governo, da academia, do agrado dos botequins e das gazetas, serão ricas, estimadas, lisonjeadas — só não serão jamais nacionais e do coração do povo!

Eu, como filho do povo, como cidadão, em nome destes direitos menos‐ prezados, protesto contra essa falsa literatura, contra os seus chefes, contra as suas obras, contra os seus discípulos, contra as suas tendências, contra as suas opressões...

Protesto em nome da minha consciência de homem...

Protesto em nome do espírito nacional, que não tem que ver com esses ídolos convencionais duma ínfima igreja, duma comunhão de meia dúzia de fiéis infidelíssimos...

Protesto, finalmente, em nome das mesmas regalias do espírito humano, que não consente que lhe imponham admirações e respeitos, como se o respeito e a admiração não fossem por excelência as coisas espontâneas e livres da alma.

Coimbra, Dezembro de 1865.

Anthero do Quental.