1. Eu, que não creio em Deus, passei um bom tempo com Notre Dame. Dentro da sua boca de baleia de pedra, céu de mil carvalhos milenares, luz de rosáceas, mandalas, arco-íris. Mas também em roda dela, sobretudo de noite, quando se transforma num clarão. E talvez mais ainda nos cais de Saint-Louis, olhando aquele corpo voltado a Oriente, a flecha erguida sobre o transepto, a corcunda de onde brotam os arcobotantes, como patas de um ser colossal. Aquático, terrestre, celeste, mais do que anfíbio.

À semelhança de tanta gente, tenho a minha história com Notre Dame. Incluindo um cortante pedaço de Inverno que ficou num romance. Tão cortante que não consigo relê-lo.

2. Das mil e uma histórias de Notre Dame, cada um escolhe as suas, e as acrescenta. Primeiro francesa, depois europeia, depois do mundo, ela é hoje sem dono. A igreja católica rege-a como fundadora, mas Notre Dame vai muito além da igreja.

Poucos monumentos na Terra serão assim um espelho humano. Isso está nos números, 13 milhões de visitantes por ano (à frente das Pirâmides do Egipto, da Muralha da China, do Coliseu de Roma, do Taj Mahal, do Alhambra, da Estátua da Liberdade, da Ópera de Sidney ou da Torre Eiffel, em algumas contagens de monumentos). Mas ainda que Notre Dame não seja o mais visitado, talvez nenhum outro reflicta para tantos, em todos os hemisférios, as aspirações e abismos do humano, com ou sem fé. Incluindo os revolucionários que decapitaram as estátuas, dançaram no altar, encheram a nave de vinho.

3. No princípio era a lama. Margens inundadas a cada cheia, cada chuva, alguns pescadores. Vieram os romanos e chamaram-lhe Lutécia, do latim lutum: lama. No lugar onde está Notre Dame terão erguido um templo a Júpiter. Que já na era cristã deu lugar a uma basílica, depois a outras igrejas. Até à primeira pedra da catedral gótica de Notre Dame de Paris ser deposta em 1163 por um filho de servos tornado beneditino, Maurice Sully, e na presença do papa.

Portugal tinha vinte anos, Afonso Henriques era um cinquentão. Na sua primeira versão, a obra terá ficado pronta um século depois. Mas seguem-se séculos de acrescentos, reformas, perdas, acidentes, destruições. Desse ponto de vista, o incêndio de 2019 é só a sua peripécia mais televisionada. E também por isso, mas não só, um vislumbre global do nosso fim. Nosso, França? Nosso, Europa? Nosso, humanos? Ajoelhada em lágrimas, de terço na mão, ou simplesmente incrédula, Paris uniu-se perante as chamas, e com ela o mundo. Macron, que nessa noite se preparava para mais uma vez combater o incêndio político de há meses, viu em Notre Dame a própria ressurreição, ao segundo dia da Semana Santa.

4. E não são poucos os sinais de Cristo. Pois Notre Dame abriga toda uma história da cristandade, muito anterior à sua primeira pedra, por exemplo três relíquias da Paixão. O pedaço de 24 centímetros da Cruz trazido por Santa Helena, mãe de Constantino. O prego de nove centímetros entregue pelo patriarca de Jerusalém ao imperador Carlos Magno. E 70 dos espinhos originais da Coroa, que terão chegado em procissão a Paris em 1239. Conta-se que então o rei Luís IX, depois chamado São Luís, se despojou dos seus trajes, e envergando apenas uma túnica, descalço, levou a relíquia até Notre Dame. Relicários foram construídos, sob uma guarda estatuária de cavaleiros de Jerusalém. Era a febre final das Cruzadas.

Como mais tarde veio a febre de queimar os hereges. Em Notre Dame foi reabilitada a mártir Joana d’Arc, muito mais tarde transformada em estátua.

5. Anteriores a essa eram as estátuas de reis bíblicos que os revolucionários de 1789 terão confundidos com reis franceses, e por isso decapitado. As cabeças foram encontradas numa escavação. Mas as relíquias de Cristo escaparam à Revolução Francesa, tal como agora ao fogo. O que esses empedernidos ateus fizeram em Notre Dame foi uma “rave”, não propriamente ateia mas pagã, a 10 de Novembro de 1793. Mulheres semi-despidas de deusas, fogo no altar, loas à filosofia. Chamaram-lhe Festival da Razão. Em seguida, tonéis e tonéis de vinho aristocrata foram armazenados na nave. Aristocrata, mas vinho. Revolucionários, mas franceses.

Veio então Napoleão, que estava mais para auto-Deus, e não só devolveu Notre Dame à igreja católica em 1802, como ali se fez coroar imperador em 1804, e se recasou em 1810. O estado da catedral seria o que Victor Hugo retrataria em “Notre Dame de Paris”, também conhecido como “O Corcunda de Notre Dame”, enorme sucesso literário de 1831. E foi Hugo, ou seja um livro, ou seja a literatura, que desencadearam talvez a maior reforma, a do século XIX, quando muitas estátuas foram feitas, mas também vitrais, e uma nova flecha de 750 toneladas em carvalho e chumbo (a original perdera-se no século anterior).

6. A França cultiva a literatura como o vinho. Só a França para levar a cabo uma reforma por causa de um romance? Não sei. Só a França para transformar oficialmente a cidadezinha de Illiers em Illiers-Combray, por causa de Proust, e do seu “Em Busca do Tempo Perdido”. Que, passando-se tanto em Paris, homenageia sobretudo uma catedral a sudoeste: Chartres.

Tenho a minha história com Notre Dame, e com Hugo por causa dela. Foi Notre Dame que me levou a Hugo. Ao contrário, foi Proust quem me fez querer ir a Chartres. E pensar que um dia lá irei, e de lá a Illiers-Combray, é sinal de que talvez ainda não seja o fim.

7. Exactamente cem anos depois do livro de Hugo, uma escritora e mecenas mexicana de 30 anos, com um belo nariz aquilino e o coração várias vezes partido, entra em Notre Dame, caminha até ao altar, aponta um revólver ao peito e mata-se. Chamava-se Antonieta Rivas Mercado. Era Inverno, Fevereiro. No hemisfério norte, mês tão mais cruel do que Abril.

8. Entre o livro de Hugo e o suicídio de Antonieta, um jovem poeta diletante também entra em Notre Dame, mas na noite de Natal. Vem em busca de “um excitante” para “alguns exercícios decadentes”. Assim, é com um “prazer medíocre” que assiste à missa. Como não tem “nada melhor para fazer”, volta para as vésperas. Crianças do seminário, vestidas de branco, cantam o “Magnificat”, que o jovem poeta ainda não reconhece. Está à entrada do coro, no meio da multidão. “E foi então que se produziu o acontecimento que dominou toda a minha vida. Num instante o meu coração foi tocado e EU ACREDITEI. Acreditei, com uma tal força de adesão, com um tal sobressalto de todo o meu ser, com uma convicção tão poderosa, com uma certeza tal que não deixava lugar a qualquer espécie de dúvida, que, desde então, todos os livros, todos os raciocínios, todos os acasos de uma vida agitada, não conseguiram abalar a minha fé, nem, na verdade, tocá-la. Eu tivera, de um golpe, o sentimento dilacerante da inocência, da eterna infância de Deus, uma revelação inefável.”

Chamava-se este jovem Paul Claudel. Foi admirador de Franco. Quando os nazis ocuparam França, começou por celebrar Pétain. Depois celebrou De Gaulle. Um dos grandes poetas do século XX, Auden, escreveu que o tempo “perdoará a Paul Claudel / perdoará que ele escreva bem”.

Uma tragédia humana que a fé não só não resolva o mal, como muitas vezes o cause. Crentes e não crentes são capazes do melhor e do pior.

9. Na noite de segunda-feira passada, a flecha de Notre Dame caiu a arder, sob os olhos do mundo, ecoando mil anos de fogueiras, longa cauda, muito anterior ao 11 de Setembro. Eu estava a meio de editar uma entrevista com Eduardo Viveiros de Castro em que ele fala do estertor da Europa em 2019. A preocupação central deste antropólogo brasileiro hoje é a mesma de alguém que podia ser neta dele, a adolescente sueca Greta Thunberg.

Já depois do fogo em Notre Dame, de os maiores milionários terem doado centenas de milhões para a reconstrução, e boa parte do mundo ter prometido logo ajudar, Greta apanhou um comboio para Estrasburgo e disse aos deputados europeus: “Quero que ajam como se a vossa casa estivesse em fogo. A nossa casa está em chamas e ainda assim nada está a acontecer. Vamos ter que mudar para ‘modo catedral’.”

Notre Dame perdeu a sua flecha, perdeu a sua floresta, mas salvou-se. França vai reconstruí-la no tempo mínimo possível. A Europa, o mundo, ajudarão, porque ela é de todos, e é parte do melhor. O pior custa mais. Com isso trabalhamos.

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