Este texto faz parte da rubrica Regresso a um Mundo Novo, em parceria com a plataforma 100 Oportunidades, em que vários jovens nos ajudam a pensar o mundo pós-pandemia.


Este ano não se fará a edição física da Marcha do Orgulho LGBTI+ em Lisboa, como de resto também não se realizarão outras marchas pelo país fora. Os cronistas homofóbicos dos pasquins de norte a sul da nação regozijam (suponho, que não os leio). Também não haverá outras marchas, como as populares, o que pessoalmente me entristece muito, que adoro os santos. Até marchar, marchar contra os canhões estará, em princípio, proibido até Setembro - ou com lotação de 2/3 de cada vez e com uso obrigatório máscara (mas temo que isso não impeça o nacionalismo bacoco de crescer, velado de patriótico, como tende a fazer em tempos de crise).

Esta praga trouxe com ela uma mudança de paradigma para mim, com a qual estou a aprender a pensar o mundo novo. Por exemplo: se em tempos eu veria a não realização das Marchas do Orgulho com medo, constato-a neste momento como um ato imprescindível de dever cívico pelo perigo de contágios que podem representar. E é paradoxal, porque é em momentos de crise que a luta política mais se costuma apresentar como urgente.

Para esclarecer desde já possíveis equívocos, clarifico: uma Marcha do Orgulho é uma manifestação. Um método de luta política que passa pela ocupação do espaço público, pela demonstração de poder popular ao romper com o “normal” funcionamento desse espaço público. É a acção simbólica de tomar as ruas, de se ser flagrantemente visível a praticar a luta pelos ideais que se defendem, normalmente expressos num manifesto.

A comunidade LGBTI, historicamente, sempre foi remetida para a clandestinidade, para o anonimato. Pessoas LGBTI que se assumiram e decidiram viver a sua verdade à luz do dia foram sendo vítimas de todos os tipos de violência, de humilhação. Mecanismos sociais, estatais ou populares, que instauraram medo e vergonha na nossa comunidade. Muitas pessoas entre nós foram aprendendo a esconder-se para fugir a essa violência. Tomámos para nós o medo e a vergonha.

(Quero-vos falar do mundo novo que temos pela frente, mas se me alongo nesta contextualização é porque quero que percebam o mundo velho de onde eu venho).

Como em tudo, houve mártires e heróis. Como em tudo o que vale a pena, houve quem nunca baixasse a cabeça. Marchar, no espaço público, e à luz do dia, é uma escolha que se apresenta como aparentemente contraintuitiva para uma comunidade que aprendeu a viver nas sombras, e no armário. Mas é a que se apresenta, ainda hoje, como absolutamente necessária. A marcha é a ‘do Orgulho’ exactamente para contrabalançar todo o tempo que vivemos em Vergonha. Ocupamos a rua à luz do dia, e enchemo-la de todas as cores e de todos os brilhos que aprendemos a bordar à luz da vela no escuro, trancadas - exactamente para dizer que também temos direito a caminhar sob o sol, a ocupar as ruas, a viver as nossas vidas.

A nossa comunidade tem especificidades, formas de opressão partilhadas, vivências particulares, uma cultura, uma história (e até umas quantas bandeiras). Estas e outras coisas unem-nos. Mas somos um povo diverso, transversal a outras ramificações sociais. Somos de todas as classes (essas que lutam), de todas as etnias, de todas as origens nacionais. Lutamos pelas necessidades particulares da nossa comunidade, pela salvaguarda dos nossos direitos, pela abolição de sistemas que nos excluem estruturalmente. E fazemo-lo com a consciência que a nossa comunidade é vítima, como qualquer comunidade oprimida, de onde as suas opressões se intersectam. Porque quando vivemos crises, quando vivemos inflações, austeridades, quando o povo sofre, a parte do povo que é LGBTI sofre a dobrar. Bem como a parte do povo que sofre de racismo, também. Ou a parte que sofre de misoginia.

Temos consciência que a luta pela nossa libertação enquanto comunidade LGBTI passa pela luta contra todas as opressões – até porque não nos interessa a mera ascensão social de alguns entre nós, queremos um mundo novo, justo para toda a gente. Não terá sido por acaso que a MOL marchou em 2013 com o lema “Arco-íris contra a crise” e em 2014 com o lema “Diversidade Contra a Austeridade” – não sei quanto a vocês, mas eu tenho muito orgulho em pertencer a uma comunidade que ao longo dos anos conseguiu ir mantendo uma postura de “se toca aos outros, toca a mim também” e de “ninguém solta a mão de ninguém”.

E queria-vos dizer tudo isto antes de vos falar desse temível mundo novo que temos pela frente, que começou há pouco tempo com estas mudanças tão drásticas na forma de vida de tanta gente, e com este perigo tão presente de um vírus novo que se propaga como este.

Queria-vos dizer que esse medo de que sair à rua e interagir com outras pessoas nos possa pôr em perigo de morte ou, no mínimo, causar danos graves à nossa saúde física (e mental) – enfim, não nos é novo. Não é esse o nosso mundo novo.

Queria que soubessem que para muitas de entre nós organizar a vida de forma a sair de casa o mínimo indispensável e apenas para cumprir as prioridades mais urgentes (de forma a nos expormos o mínimo ao perigo que os outros representam), é a forma mais normal de organizar o dia-a-dia. Não é esse o nosso mundo novo.

Queria-vos dizer que vermo-nos no meio de uma praga que se espalha e mata indiscriminadamente, cujo tratamento é primeiramente débil, de difícil acesso e incerto, e cuja cura não existe – até isso já vivemos. E na altura, não estava lá ninguém, e muitos estados viraram costas ao dever que tinham para com a saúde de todos os que deixaram morrer. Dessa vez, até fomos nós os bodes expiatórios. Não é esse o nosso mundo novo.

Não nos é, pois, estrangeira a Peste, nem estranha a Guerra, nem nova a Fome nem mesmo desconhecida a Morte. O apocalipse não é, para nós, um mundo novo.

É o mundo velho, que lutámos tantos anos para abandonar, e que queremos deixar para trás. Se vos falei da forma como vivemos durante tanto tempo (e que muitas de nós ainda vivem), foi para perceberem que esta experiência que está a ser vivida por toda a gente pode servir de exercício de empatia. Que saibam a ansiedade que é sentir perigo ao sair de casa (para demasiadas pessoas, o perigo está mesmo dentro de casa) – e que se lembrem que para nós o perigo existirá mesmo depois de o vírus ter cura. A homofobia, a transfobia, o racismo, a pobreza, entre outros, ainda não se lhes encontrou tampouco a cura.

O mundo novo é não poder, para já, lutar como sabemos lutar: de mãos dadas e punhos em riste a descer do Príncipe Real até às Naus (ou da Praça da República aos Aliados, ou do Mosteiro de Santa Clara à Praça 8 de Maio, ou por tantos outros caminhos de Portugal por onde marchamos todos os anos). Mas não podemos parar de marchar, não agora.

#continuamosamarchar, é o mote deste ano da MOL transformada em rede de apoio para enfrentar esta situação de emergência. Também a comunidade trans e intersexo se organizou para providenciar uma rede de apoio de pares. As várias associações que trabalham nesta área adaptaram os seus eventos comunitários e de quebra de isolamento aos formatos possíveis, e as que providenciam e articulam respostas de emergência ou outras continuam a trabalhar, com esforços reforçados.

Neste mundo novo, vamos ter de nos esforçar para continuar a ser ouvidas, e cada vez mais alto. Temos de continuar a lutar contra a desinformação espalhada sobre nós pelos sectores mais conservadores. Temos de combater as ondas de populismo que costumam aproveitar épocas de crise para atacarem em força. Temos que garantir que este momento de crise generalizada não se traduz num recuo das conquistas até hoje conseguidas. Temos que poder contar com as nossas aliadas, com todas as pessoas que concordam com a justiça e necessidade do nosso brado, que combatam connosco a discriminação onde a encontrarem, das suas famílias aos seus locais de trabalho.

A Estratégia de Saúde para as pessoas LGBTI que estava a ser redigida pela DGS com o apoio indispensável de várias associações da nossa sociedade civil, não pode morrer na praia. O primeiro capítulo, sobre a saúde trans e intersexo, traz uma nova luz sobre práticas de acompanhamento despatologizantes e respeitosas da integridade física e moral das pessoas trans e intersexo. Faltam cumprir as normas clínicas que tinham de sair (que deviam ter começado a emergir desde Outubro de 2019, e cuja ausência não se prende com esta crise). Urge generalizar as boas práticas mencionadas no documento, bem como montar e implementar as campanhas de literacia e promoção sobre saúde LGBTI prometidas. Os restantes capítulos também não podem ficar por ser escritos. Uma crise de saúde pública não pode servir de desculpa para apagar a saúde das pessoas LGBTI da ordem do dia. Dra. Graça, assim que for possível, nós cá estamos e prontas para continuar os trabalhos.

O apocalipse não é, para nós, um mundo novo. Contribuiremos para esta fase difícil que se atravessa com a sabedoria de quem já cá esteve, de várias formas. Sabemos que se toca aos outros, toca também a nós.

Sabemos que a urgência é construir sentido de comunidade - que ninguém solte a mão de ninguém (metaforicamente, não vá eu ser acusada de incentivar ao contágio). Sabemos que nos vamos deparar com a relativização dos nossos direitos e vidas face a “problemas maiores”, como se fossem os problemas mutuamente exclusivos, e como se não pudéssemos endereçar todos.

Há um mundo novo de onde devemos ter vindo, pois sonhamos com ele. Marchamos de regresso a esse mundo novo.

*Alice Azevedo escreve segundo o antigo acordo ortográfico