Os que me lêem regularmente — ou porque me consideram pertinente, ou porque me detestam, ou mesmo porque acham que devia antes puxar uma carroça – sabem que nunca escrevo sobre questões nacionais. Um subterfúgio, digamos assim, para escapar às inevitáveis, intermutáveis e impenetráveis maledicências da política portuguesa, tão convulsa como a política de qualquer país, mas que passa pela nossa pele como lixa número seis. Mas desta vez resolvi abrir uma excepção. O assunto tem uma magnitude que se justifica. Trata-se dessa instituição sempre presente e sempre surpreendente que é o Banco de Portugal.

Isto por ter lido um título na página tsf: “BdP pede informações ao EuroBic na sequência da investigação a Isabel dos Santos”. E o sub-título: “Banco liderado por Carlos Costa esclarece que acompanhou, nos últimos anos, a actividade do banco onde Isabel dos Santos é accionista.”

Uma escritora minha amiga, a Ana Vidal, fez logo no Facebook o comentário adequado: “É o chamado 'acompanhante de luxo'. Costumam sair caríssimos e são pouco fiéis.”

Fui-me lembrando de que, nos últimos anos, desde que o primeiro banco nacional se foi abaixo – na sequência da crise que expôs as mais escondidas vilanias bancárias, em 2008 – desde essa altura que ouvimos o BdP dizer a mesma coisa: que estava atento, ou prestes a prestar atenção.

É isso que parece que o BdP faz: “está de olho” nas trafulhices da banca, embora os prejudicados sejam os portugueses em geral e nunca os olímpicos responsáveis daquele paradigma das instituições institucionais.

E também me fez lembrar duma ocasião, há poucos anos, quando tive a oportunidade muito exclusiva de visitar a sede do BdP. Trata-se de um quarteirão inteiro da Baixa Pombalina, com 20.500 metros quadrados, mesmo a seguir à Praça do Comércio (o terreno mais caro de Portugal, certamente), que até inclui uma igreja há muito profanada, que serviu de cofre na I República e que, antes da reforma de 2013, era, imagine-se, a garagem das "limusines" dos administradores.

A reforma foi do melhor que se possa fazer. Reforçou estruturalmente o conjunto, de modo a resistir a um terramoto de sete na escala Richter. Depois, a equipa do grande arquitecto Gonçalo Byrne respeitou o severo exterior pombalino, adicionando-lhe alguns pormenores modernos muito interessantes. No interior, pôde dar largas à criatividade, aproveitando elementos das várias épocas e acrescentando intervenções modernas, isto sem ter, nitidamente, um limite orçamental. As instalações incluem um Museu do Dinheiro, catacumbas pré-pombalinas e, éramos capazes de apostar, um abrigo nuclear. Na decoração não se poupou em nada para que tudo ficasse excepcional, desde os candeeiros desenhados de propósito aos couros finos acolchoados. Na igreja, que agora faz de entrada magistral, e muito bem, há um cortinado de fio de ouro que deve ter dez metros de altura – não medi, mas fiquei a olhar para ele de boca aberta. Os gabinetes e as salas são do melhor bom gosto corporativo que se possa conceber. Talvez só o Dono Disto Tudo tivesse um estatuto decorativo comparável. Em termos de edifício público, é o único em Portugal que se iguala na riqueza de materiais e sobriedade do traçado da sede da Fundação Gulbenkian. Não há nada construído na órbita do Estado, nos últimos cem anos, que se lhe possa comparar.

Só no estrangeiro, e não com muita frequência, vimos instalações modernas com tão bom aspecto. Hotéis com certeza, museus e academias é possível, mas em edifícios públicos, geralmente o orçamento e o pudor impedem estes regalos. (Note-se que não somos contra a que se construa bem e se adorne com qualidade. Somos é a favor de resultados.)

Trabalhar lá, pelo que tenho ouvido e sabido, é um privilégio, que o simples concurso público pode não garantir, mas os contactos certos possibilitam. O BdP responde directamente ao BCE, que determina salários e promoções, pelo que passa acima do radar dos fracos poderes de controle dos órgãos de contas nacionais. (Há uma Lei Orgânica do banco, estabelecida pela Assembleia da República, que basicamente o deixa em roda livre.) Já não emite moeda, isso sabemos. Concretamente, parece que o seu único objectivo é precisamente o seu grande falhanço: tutelar e inspeccionar o sistema bancário.

O que farão as suas centenas de funcionários, quando entram de manhã? Uma parte deles trata dos outros funcionários, como em qualquer organização; o departamento de recursos humanos lida com as férias do pessoal, as antiguidades, despesas de representação, o trivial. Outros departamentos servem as funções correntes, inclusive a limpeza e manutenção, com certeza. Fora isso, que se saiba, faz relatórios e mais relatórios para o BCE e para o Governo – que também “estão de olho”. Mas então e a supervisão da banca nacional? Para que serve uma instituição que sucessivamente, repetidamente, não sabe e não viu, ou então sabia e estava a ver, mas nada fez para punir os “desvios” e “imparidades” (ah! esta linguagem sanitizadora!) e proteger o contribuinte?

No caso de Isabel dos Santos, apenas o mais recente, mas não o último dos “escândalos” com repercussões internacionais, o que obscureceu a visão dos supervisores do BdP, que podem até detectar um cheque de 100 euros sem fundos? A senhora tem 142 empresas em Portugal! Ofuscados pelo ondular das cortinas douradas, quiçá.

Seria ridículo se não nos saísse tragicamente caro.

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