A princesa bilingue
A jornalista mostrava-se embevecida com a façanha da pequena princesa, que conseguiu (vejam bem!) aprender espanhol ao conversar com a sua ama espanhola… Aprendeu uma língua só a conversar! (A notícia de que falo está aqui.)
Perdoem-me o travo a ironia. Fico sinceramente feliz ao pensar na pequena Carlota a falar espanhol sem dificuldade – tal como fico feliz ao pensar em todas as outras crianças, a começar pelos filhos de imigrantes, que aprendem duas, três, às vezes quatro línguas sem que o caso apareça nos jornais. É que, enfim, a façanha da princesa não é extraordinária. Para aprender duas ou mais línguas sem dificuldade não é preciso ser bisneta da rainha Isabel II – nem, para dizer a verdade, ter um talento especial para as línguas. Só é preciso ser criança.
Lembrei-me da notícia porque passei a tarde de ontem entre crianças a brincar em várias línguas. Os meus filhos têm duas primas nascidas em Inglaterra e elas andam por cá, numas férias rápidas. A mais velha já tem cinco anos e fala inglês e português (que faria se tivesse uma ama espanhola?). Às vezes, no meio das brincadeiras com os meus filhos, lá diz umas coisas em inglês, mas traduz logo a seguir. Para eles, é tudo natural e desculpa para mais risos e saltos.
Ora, o meu irmão – pai das duas meninas – tem dois vizinhos – um alemão e uma polaca – que estão cá a passar férias. Vieram ter connosco para a tarde de praia e trouxeram a filha de um ano, que começa agora a dizer as primeiras palavras. Estou certo que, daqui a uns três anos, a menina saberá falar um pouco de inglês, mas também de alemão e de polaco.
A minha sobrinha mais velha, quando viu os vizinhos de lá a aparecerem por cá, ficou baralhada por uns segundos, como nos acontece a todos quando chocam dois dos mundos por onde nos movemos. Com a sua voz de menina, avisou-os, em inglês: «Eles cá falam português… Mas não se preocupem, eu ensino-vos!»
O curioso é que, mesmo que aquele casal por cá vivesse muitos anos, dificilmente conseguiria aprender português tão bem como a minha sobrinha. Porquê?
Não é, certamente, por ela descender de portugueses e eles não. A única razão é esta: a idade! Uma criança aprende uma, duas, três línguas com grande facilidade – mas, a partir da adolescência, a capacidade para aprender outra língua diminui de forma muito marcada. É curioso pensar que as línguas são uma excepção ao que é habitual – afinal, aprendemos quase tudo com mais facilidade depois da adolescência: basta experimentar ensinar equações a uma criança e a um jovem de 25 anos para perceber que a criança tem um pouco mais de dificuldade...
A máquina de aprender línguas
O cérebro parece ter um mecanismo que ajuda a aprender línguas — mecanismo esse que começa a desligar-se a certa altura. Uma criança aprende qualquer língua, desde que conviva com essa língua regularmente. Há línguas com milhões de formas para cada verbo (sim, milhões!) — uma criança aprende-as sem pestanejar. Aliás, as línguas passam por períodos de simplificação quando têm de ser aprendidas por muitos adultos — foi o que aconteceu com o persa e o inglês. Se a transmissão for feita de adultos para crianças, os mais novos aprendem as mais estapafúrdias das regras gramaticais, mantendo a complexidade da língua.
Não acontece o mesmo com os sistemas de escrita: os símbolos podem ser mais ou menos complicados e, de facto, é mais difícil para uma criança aprender a escrever chinês do que português. A escrita é qualquer coisa de artificial, que aprendemos com esforço — a gramática da língua, aquela que aprendemos antes de escrever, essa é um sistema bem mais orgânico e natural do que pensamos, habituados que estamos a vê-la plasmada em livros feitos a pensar na forma escrita da língua.
Ora, se é espantoso pensar no processo de aprendizagem de uma só língua por uma criança, o que dizer da capacidade de aprender várias línguas? Uma criança portuguesa no Luxemburgo, por exemplo, acabará o ensino a saber falar português (que aprendeu em casa), luxemburguês, francês e alemão. Talvez não saiba as quatro línguas ao mesmo nível, mas saberá certamente falá-las melhor do que um adulto que decida aprendê-las aos trinta anos.
Tantas línguas farão bem ao cérebro?
Hoje em dia, é comum dizer que aprender várias línguas faz bem. No entanto, ainda há quem tenha medo de tanta língua a ocupar espaço no cérebro das crianças. Há uns anos ouvi falar do caso de um casal do País Basco francês que recusava o ensino do basco ao filho por poder estragar o francês. Aqui ao lado, quando converso com um ou outro espanhol monolingue, noto um certo horror quando se fala das pobres crianças de regiões como a Galiza ou a Catalunha, obrigadas como são a aprender duas línguas (e ainda o inglês!). Por cá, não é difícil encontrar quem ache que não se deve ensinar línguas estrangeiras demasiado cedo — lançando a sua aprendizagem precisamente para a idade em que o tal mecanismo começa a desligar-se…
Depois, há quem fique horrorizado quando percebe que nem sempre os filhos dos emigrantes aprendem a língua da família como se vivessem no país de origem. Ora, uma pessoa sabe sempre uma parte da língua, mas nunca a língua toda. Os idiomas são territórios partilhados que ninguém conhece na totalidade — por exemplo, sei conversar bem no português do Sul, mas não conheço uma série de termos e entoações mais típicas do Norte (e estou certo de que há muitos termos do Sul que também não conheço). Da mesma forma, sei conversar com especialistas das áreas que conheço bem, mas sinto-me estrangeiro numa conferência de especialistas em medicina dentária. Em inglês, dou-me melhor com o registo escrito do que com a linguagem familiar — em português, estou mais habituado a usar os vários registos. Uma criança que usa uma língua para conversar com os pais saberá usá-la muito bem nesse registo, mas terá dificuldade em ler nessa mesma língua, a não ser que faça o esforço de ler muito.
Línguas a dobrar
As crianças bilingues têm um bilhete de entrada para mais línguas, para mais territórios — talvez algumas acabem por nunca explorar algumas das línguas que aprenderam, enquanto outras vivem bem, durante toda a vida, em vários idiomas, desenvolvendo-os tão bem ou melhor do que qualquer falante monolingue. Estas crianças têm a vantagem de aceder, rapidamente, a mais gente, a mais literatura, a mais conversas — e ainda de conseguir treinar o cérebro com duas ou três máquinas gramaticais, numa ginástica invejável. Se cada língua traz consigo alusões, ditados, piadas recorrentes, palavras de diferentes pesos e valores, duas línguas são um duplicar de prazer e possibilidade — e também de utilidade.
Por isso, fico contente com a princesa Charlotte — e ainda mais contente fico com as minhas sobrinhas bilingues e com todas as crianças que, por esse mundo fora, vivem em mais do que uma língua. Depois, olhando para os meus filhos, fico espantado com a maneira como uma criança aprende as palavras e as frases que rodopiam à sua volta, começando, devagar, a dizer coisas que mais ninguém disse, agarrando a língua e o mundo como se fossem dela.
E são!
Marco Neves | Escreve sobre línguas e outras viagens no blogue Certas Palavras. É autor da Gramática para Todos — O Português na Ponta da Língua.
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