No dia 27 de outubro, Matias Damásio foi entrevistado no programa Alta Definição da SIC e partilhou publicamente que, quando tinha 12 anos, foi abusado sexualmente por uma mulher. De uma entrevista com 43 minutos, a imprensa “vampirizou” os 60 segundos nos quais o cantor angolano explicou o que lhe aconteceu, e isso tornou-se notícia por todo lado. Já em março de 2017 aconteceu algo semelhante com a biografia de Tozé Brito, do seu livro com 332 páginas, as duas onde referia a sua história de abuso foram igualmente destacadas como se fosse a única informação relevante.
Certos meios da comunicação social parecem devorar os casos em que uma figura pública faz uma partilha de uma história de abuso sexual, especialmente quando se trata de um homem vítima/sobrevivente. No entanto, a verdade é que estas notícias não informam para lá dessa mesma partilha. Não parece haver um investimento em desenvolver estes casos mediáticos para informar sobre uma realidade que continua silenciada e invisível, e desconhecida do grande público. Seria importante, por exemplo, que se pegasse na partilha de Matias Damásio e aprofundassem questões que são centrais a este tipo de violência, tais como: compreender o contexto em que ocorreu, desconstruir as dinâmicas de poder da abusadora, quais são as estratégias de manipulação, como reagiu o cantor na altura e como foi levado a interpretar e a reescrever aquela experiência traumática enquanto criança até à sua vida adulta, entre várias outras questões que são comuns quando falamos de violência sexual infantil. Se houvesse esta preocupação, cada momento mediático como este seria também uma oportunidade de informar para se desvendar aos poucos esta violência. Assim, em vez da mera satisfação da curiosidade, poderiam ser feitos trabalhos informativos e contribuir para consciencialização pública e social de que estes casos não são, de todo, isolados, nem únicos.
Assim, importa refletirmos também sobre o porquê desse interesse sobre estes casos de violência sexual por parte do público. A verdade é que estas temáticas não fazem parte da nossa educação, enquanto crianças e até à vida adulta. Seja por medo, tabu ou por desconhecimento, assuntos como violência sexual parecem ser proibidos e a pouca educação que pode haver é, muitas vezes, errada. Não é por acaso que se continua a acreditar que os abusadores são desconhecidos das vítimas, quando sabemos que isso é um mito. Na maioria dos casos, o agressor ou é da família ou é conhecido da criança.
Quando falamos de prevenção da violência sexual infantil, é importante que as partilhas feitas por Matias Damásio e Tozé Brito sejam também momentos de educação e informação. Por exemplo, em ambos os casos, o abusador foi uma mulher, mas sabe-se que na maioria dos crimes sexuais contra menores o agressor é homem. No entanto, a realidade é que também há mulheres que abusam, o que não faz com que a experiência traumática de violência sexual deixe de impactar a vida da vítima. Ou seja, não é porque uma mulher abusa de um rapaz que, de algum modo, já não constitui abuso sexual ou que não é uma experiência traumática para a vítima.
Esta crença errada de que um rapaz tem sorte quando uma mulher abusa dele, continua enraizada na sociedade. Ainda recentemente, numa das sessões de sensibilização da Quebrar o Silêncio que dinamizo em escolas, um jovem de 18 anos disse-me que “se um homem de 40 anos abusar de uma rapariga de 13 anos é abuso. Se uma mulher de 40 anos abusar de um rapaz de 13 anos, já depende. Depende se ele gostou, se teve prazer, se quis.” E nas redes sociais este discurso mantém-se no mesmo registo, havendo quem comente “tão bom ser violado por uma mulher, alguma interessada?” ou ainda “vais dizer que não querias ser violado no bom sentido por uma boa mulher”.
Estas crenças são graves e perigosas, porque contribuem para a contínua desvalorização de que os homens não podem ser vítimas de abuso sexual, especialmente se o abusador for uma mulher, e, como referi acima, contribuem para o seu silenciamento. Em média, um rapaz que seja abusado na infância, demora cerca de 26 anos até conseguir procurar apoio. Esta é uma das razões para reconhecer que o caso do Matias Damásio não é isolado e que pode ser a história de qualquer rapaz ou homem que conheçamos.
Se, em conversas com amigos e nas redes sociais, desvalorizamos estas partilhas, dizendo “por este andar vai ser difícil encontrar alguém que não tenha sido violado sexualmente; está na moda dizer isso”, estamos a desvalorizar a experiência traumática de que essa pessoa foi vítima. Lembre-se que 1 em cada 6 homens é vítima de alguma forma de violência sexual antes dos 18 anos. Imagine que era o seu filho, marido, pai, amigo, alguém com quem se preocupa. Eram estas as reações que gostava que ele tivesse?
(Artigo corrigido às 14h30 de 2/11/2018: alteração da referência temporal à entrevista de Matias Damásio)
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