Embora a Rússia seja considerada um grande país, a realidade dos números não corresponde à imensa mancha no mapa (17 milhões de km2, o dobro do Canadá). Tem uma população de 145 milhões (menos que o Bangladesh, por exemplo) e um PIB per capita de cerca de 11 mil dólares (menos de metade de Portugal). A taxa de natalidade é muito baixa, mais ainda do que na União Europeia, o que não augura um bom futuro.
Mas não se pode avaliar a potência apenas por estes valores; a Federação Russa é um dos nove países do mundo com armas nucleares - talvez o que tem mais - recursos tecnológicos notáveis e uma grande riqueza em matérias primas estratégicas.
Militarmente, o peso percetível da Rússia no xadrez mundial mudou muito no último ano. Tem-se visto, com surpresa, que afinal as suas forças armadas convencionais não são tão eficientes como se julgava - incluindo, na noção de eficiência, o tamanho, a preparação e a capacidade operacional. Os russos continuam, basicamente, a usar os métodos de Estaline: enviar homens despreparados em grande quantidade para a frente, sem consideração pela vida dos seus próprios soldados.
Não só não conseguiram um objectivo que parecia relativamente fácil para uma tão grande potência - a ocupação de um país com apenas 40 milhões de habitantes e um PIB per capita ainda mais baixo, ou seja, menos e mais pobres - como nesse falhanço declarado têm perdido centenas de milhares de homens. As últimas estimativas calculam que mais de cem mil foram mortos ou feridos desde Dezembro do ano passado (o número real não se sabe, por razões óbvias).
Estrategicamente, numa alteração chocante, muitos analistas consideram que a Federação deixou de ser um grande player mundial e está a caminho de se tornar um estado vassalo da China. E a NATO, um organismo que tinha perdido razão para existir, renasceu da mumificação burocrática e até ganhou novos aderentes. O novo “equilíbrio” mundial é hoje, 2023, aquele que Orwell escreveu em 1949, no seu livro extraordinário “1984”: três grandes poderes - Estados Unidos, China e Europa - em permanente disputa.
Mas a questão que queremos colocar agora é se o país pode “aguentar” economicamente uma guerra de atrito sem fim à vista.É necessário um novo equilíbrio da balança comercial (menos importações e exportações menos lucrativas) e uma adaptação às sanções económicas que a maioria dos seus antigos parceiros comerciais lhe impuseram. A guerra pressupõe também uma economia adaptada ao esforço militar, ao mesmo tempo que tenta minimizar o efeito material e psicológico na sua população. (Nós, portugueses, que mantivemos uma guerra entre 1963 e 1974, também fora de portas e com reprovação internacional, conhecemos a situação.)
Ao nível individual, as mudanças não serão muito evidentes. Continua a inflação alta, mas tem baixado e vai continuar a baixar , o factor mais importante para as finanças familiares. O McDonald’s agora chama-se ”Vkusno i tochka” ("Saboroso e é tudo"), mas continua com o mesmo sabor e apresentação. A empresa norte-americana vendeu a cadeia ao oligarca Alexander Govor, a preço de saldo, diga-se. Segundo o Instituto KSE da Faculdade de Economia de Kiev, das três mil empresas ocidentais que tinham representação na Rússia, apenas metade fechou as portas.
As televisões continuam com os mesmos programas de entretenimento e os noticiários patrióticos valorizam o país e os seus heróis, passados e presentes; não há mudanças nos transportes, no trabalho, no dia-a-dia. Há o medo de ser chamado para o serviço militar, mas o governo tem escolhido criteriosamente os homens das minorias étnicas e regiões remotas.
Nos centros urbanos, os jovens que não querem ir para a guerra já fugiram (centenas de milhares) para outros países. Não se pode viajar para fora do país, ou porque o país não deixa ou porque os países-destino não querem, mas quantos russos é que viajavam normalmente para o estrangeiro? Na prática, os mais afectados são os famosos oligarcas, uma minoria mínima, que viram os seus bens estrangeiros congelados, os iates arrestados, as residências fechadas e os passaportes recusados na maioria dos seus destinos preferidos .
Segundo a empresa de dados World-Check, estes incómodos foram impostos a 2.215 pessoas. Outra fonte avalia os prejuízos desses russos muito ricos em 100 mil milhões de dólares, apenas 1/4 dos bens no estrangeiro. Se não podem ir para a Riviera, vão para o Dubai, que é mais pornograficamente luxuoso. Para o povo, que não tem contas na Suíça ou jactos privados, e nem sequer compra importados, a vida continua como sempre foi.
Ao nível nacional, a economia russa tem mostrado uma resiliência e adaptação notáveis. Para este ano espera-se um crescimento de 0,7% (igual ao da França). O rublo caiu inicialmente, mas já recuperou. As transacções internacionais também podem ser feitas em yuans (a moeda chinesa), que é usado actualmente em 16% das exportações. E também se negoceia em rupias indianas ou dirhams dos Emirados.
Esta flexibilidade nas moedas usadas permite que o petróleo e o gás continuem a ser exportados, através de países terceiros e empresas sediadas em paraísos fiscais “imparciais”, que não têm problemas éticos e sabem aproveitar uma boa oportunidade.
Os países asiáticos têm comprado o petróleo que a Europa já não quer. Em Março, 90% das exportações de crude foram para a China e a Índia.
Segundo uma fonte inconfirmável (mas confiável, na minha opinião), em 2022 as exportações da UE para a Arménia duplicaram e as exportações da Arménia para a Rússia triplicaram. As vendas de telemóveis da Sérvia para a Federação Russa passaram de oito mil dólares em 2021 para 37 milhões em 2022. De repente, o Cazaquistão que não fabrica máquinas de lavar a roupa, enviou 100 mil unidades para os importadores russos.
Há sectores mais afectados, como o automóvel, que não consegue comprar componentes electrónicos, ou o farmacêutico, onde não é fácil substituir substâncias activas. Mas, se não se pode ter um Lada, o famoso carro russo, pode-se ter um Haval, o equivalente chinês.
As sansões que obrigam os exportadores a usar rublos em vez de dólares aumentaram a procura da moeda russa. O resultado é um superavit na balança comercial, apoiado no aumento da exportação de petróleo e gás e uma redução das importações.
Resumindo uma história cheia de pequenas histórias não muito edificantes, Putin está a conseguir manter a população estável e a economia viável, mesmo tendo perdido a sua aposta na conquista fácil da Ucrânia. A percentagem do Produto Nacional Bruto gasta nesta guerra é mímima, muito inferior à da II Guerra Mundial, quando chegou aos 60%. Se esta estabilidade será possível a longo prazo, uma vez que a “operação militar especial” está para durar, não é possível prever. Até agora, a economia do país tem funcionado muito bem, considerando as restrições que os seus opositores internacionais impuseram.
No mundo multipolar em que estamos, cheio de “operadores sombra” e de interesses económicos que se sobrepõem a considerações éticas, tudo é possível. Uma conclusão é evidente: não há boas ou más causas, apenas oportunidades de negócio que se adaptam a qualquer situação. Os coitados que morrem na frente são apenas peões no xadrez inimputável do campeonato mundial.
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