Um escritor afamado, Gabriel Matzneff, parte do meio literário e intelectual francês, assume a sua pedofilia, aliás “philopède” que é uma maneira mais intelectual de pôr a coisa, invertendo sílabas mas não o significado. Assume-se há vários anos, no universo ficcional e no conjunto da obra publicada. Ninguém reparou? Não havia essa leitura ou essa preocupação? Portanto, as suas declarações sobre relações com jovens ou os seus relatos de façanhas sexuais transformados em ficção nunca preocuparam ninguém. Não quer com isto dizer que não haja quem o encare com cepticismo e perplexidade perante algumas das suas declarações, mas, no fim, estava tudo bem. Até porque Gabriel Matzneff, o escritor, foi aclamado pela crítica sucessivamente, figuras como Jean-Paul Sartre ou Simone de Beauvoir louvaram o seu talento. Matzneff ganhou prémios, recebeu a medalha das Artes e Letras do estado francês em 1995. Conclusão? Um autor à prova de bala.
Bom, a história rebentou quando surgiram citações do livro recentemente publicado por Vanessa Springora, intitulado “Le Consentement”. Nessas páginas, a autora relata a sua relação com o escritor. À época ela tinha 13/14, ele tinha 50 anos de idade. A história é de tal forma perturbadora que o meio literário francês se arrepiou. No livro agora publicado, Vanessa Springora conta como ainda hoje, 35 anos depois, se sente atormentada por esse homem, que descreve como um ogre dos contos infantis ou um caçador de jovens presas, que nunca escondeu as suas preferências sexuais, fosse na escrita ou nos plateaux de televisão, onde era um convidado habitual. Só em 1998, numa emissão de Apostrophes, o confrontaram pela primeira vez sobre os relatos que ia publicando, ano após ano, sobre a sua preferência pelos "Menos de 16 anos", o título de um livro que publicara. Acossado, Metzneff grita que está a ser vítima de um linchamento público. No entanto, muitos daqueles que o tinham apoiado afastam-se e, pela primeira vez, Gabriel Matzneff está sozinho.
Nos últimos dias, o editor de Matzneff, Antoine Gallimard, da prestigiada editora Gallimard, anunciou que não só não publicará o próximo romance, como deixará de publicar e distribuir o diário do autor. Disse: “Senti que a ligação entre os seus escritos e a vida real se tornou cada vez mais problemática”. Caiu, portanto, um escritor que, em Portugal, porventura meia dúzia de pessoas conhece. E caiu um assumido “philopède”, capaz de declarações ignóbeis.
Perguntarão se um escritor não se pode imaginar violador ou pedófilo. Pode. Um escritor pode imaginar-se o que entender se servir à história que conta. Por isso mesmo, não existe, na minha perspectiva, escrita feminina ou escrita masculina, existe escrita e existe essa dimensão tamanha que faz a grande Literatura. Existe um descompasso entre o criador e a sua vida? Sim, tantas vezes existe um descompasso, um desacerto. Muitas vezes, admirámos um escritor, homem ou mulher, e quando o conhecemos somos confrontados com uma pessoa de que não gostamos. Isso impede-nos de o ler? No meu caso, a resposta é sim. Não creio que o mundo precise de criadores humanamente desprezíveis por mais talento que tenham, mas quem sou eu? Já sei que me irão invocar os exemplos do costume, o clássico Caravaggio era um assassino, quando na verdade a história do pintor é um pouco mais complexa do que esse rótulo parece implicar. Pouco me importa. No caso de George Matzneff, posso dizer com toda a certeza, ouvi falar dos seus livros, não li, nem tenciono. A dimensão negra da humanidade afecta os criadores, já se sabe, mas para mim existem linhas que não se cruzam. A pretexto de nada. Muito menos da Arte.
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