Podemos disfarçar e mascarar a realidade, mas o balanço do ano é demasiado agreste para ilusões: o mundo está à beira de um caos civilizacional; as guerras não terminam; as meninas continuam a casar aos nove anos em vários países; as mulheres são impedidas de ir à escola, de ter qualquer autonomia corporal; a disparidade salarial para o mesmo cargo e desempenho mantém-se de maneira gritante; as horas de trabalho adicional, que as mulheres têm de dedicar à família, não decrescem; as mulheres continuam a morrer às mãos dos homens; as mulheres são violadas e agredidas, diminuídas no seu estatuto de ser humano. 

Não há paridade, não há igualdade. Há discriminação e violência. Talvez este não seja o dia para escrever estas coisas, porque, afinal, podemos sempre dourar a pílula e fingir que está tudo bem. Talvez eu tenha esperança de que os corações estejam na sua versão morna e capazes de entender que é urgente fazer mudanças reais, que é importante exigir políticas públicas de protecção às mulheres.

Aquela que é, para tantos, a pessoa mais relevante do ano – atenção, a pessoa e não apenas a mulher –, Gisèle Pelicot, viverá o Natal com o alívio de ter visto o julgamento terminado, e com o descontentamento de saber que a justiça feita é relativa e até questionável. 

Com Gisèle Pelicot aprendemos que a vergonha tem de mudar de lado, é tempo de as mulheres reivindicarem o seu lugar de fala, de estarem no mundo com a mesma importância e dignidade dos homens. Relembro que não é diabolizar os homens, é apenas perceber que o feminismo continua a ser uma causa importante, face a tantas zonas negras e violentas que a vida das mulheres ainda tem. Gisèle Pelicot deu a cara por inúmeras mulheres e fê-lo com essa consciência. Não conseguiram cancelá-la com os argumentos de que bebia álcool ou gostava disto e daquilo. É a pessoa mais importante do ano e o maior exemplo de todos, quando falamos de dignidade. Desejo-lhe o melhor.