No sábado, as redes sociais, agora permitidas, mais uma vez demonstraram a sua capacidade de perturbar a ordem estabelecida, formando uma cadeia de comentários que culminaram com muito povo na rua. Milhares, expontâneos, com o mesmo entusiasmo e determinação que durante décadas mantiveram o regime num convívio aparentemente ameno.
Dizem fontes várias, não ligadas entre si, e dizem os contactos que os cubanos têm com o mundo, que foi o maior protesto desde que o país se tornou, oficialmente, uma “república socialista marxista-leninista unitária”, talvez só comparável ao “Maleconazo” de Agosto de 1994.
Os protestos começaram na cidade de San Antonio de los Baños e rapidamente se espalharam por outras vinte cidades, vilas e aldeias, sem uma direcção ou orientação visíveis, apenas ligados pela identificação dos manifestantes com as causas da agitação: carência de bens essenciais em geral e falta de meios de combater a pandemia em particular. Um manifestante disse por telefone à BBC: “Isto é pela liberdade do povo, não aguentamos mais. Não temos medo. Queremos mudança, não queremos mais ditadura.” Disse outro: “Não há comida, não há remédios, não há liberdade. Eles não nos deixam viver. Já estamos cansados”.
Em 1994, os protestos foram o resultado das enormes mudanças no nível de vida resultantes do fim do apoio da União Soviética, que vinha sustentando as carências cubanas em nome do internacionalismo proletário. Na verdade, os soviéticos exploravam a situação, comprando açúcar muito barato e vendendo equipamentos muito caros, mas o sistema permitia que Cuba mantivesse a cabeça levantada e desse aos seus habitantes cuidados de saúde e alimentos básicos. Com a queda do regime em Moscovo, acabaram as trocas e seguiu-se aquilo a que o partido chamou um “período especial”, em que foi preciso reajustar o consumo às carências.
Só a partir de 1999, quando a Venezuela de Chavez começou um relacionamento de irmãos com a Cuba de Castro, é que a situação melhorou consideravelmente.
Desta vez, o gatilho parece ter sido a pandemia, para o qual o tão famoso sistema de saúde pública afinal não estava preparado, levando até a faltas de oxigénio.
As manifestações de Domingo prolongaram-se pelos dias seguintes, mas foram imediatamente reprimidas com violência. Miguel Díaz-Canel, o Presidente e Primeiro Secretário do PCC que sucedeu a Rául Castro em Abril deste ano, apelou para que os cubanos saíssem para a rua para “confrontar” os manifestantes. E usou o chavão habitual: são os norte-americanos que estão por trás da agitação. Desde o embargo decretado pelos Estados Unidos, em 1962, que todas as carências da ilha são por culpa deles. E toda a oposição ao partido único, que realmente nunca se viu, também era da responsabilidade da CIA.
Ora bem, vendo as coisas numa perspectiva histórica, Cuba tem todas as razões para acusar os Estados Unidos de muitas e diversas malfeitorias. Foi uma colónia espanhola até 1898, ano em que os norte-americanos a invadiram, dando-lhe uma “independência” aparente em 1902. Manteve-se sempre sob a alçada dos yankees, que escolhiam os presidentes, orientavam a exploração das plantações de cana-de-açúcar e consumiam os maravilhosos charutos, os melhores do mundo.
Em 1946, deu-se um encontro histórico no Hotel Nacional, em Havana, com a presença das principais “famílias” das máfias norte-americanas, ao que parece organizado por Lucky Luciano. Ficou conhecido como a “Conferência de Havana” e decidiu-se transformar a ilha num enorme resort, com hotéis e casinos, com a vantagem de escapar ao escrutínio do FBI.
Em 1952 escolheram um Presidente incompetente e brutal, Fulgêncio Baptista, que era tão corrupto que até chamou a atenção dos países ocidentais não implicados nas baixarias da situação. Tanto que, quando o movimento revolucionário que levaria Fidel ao poder começou a combater contra o Governo e as máfias, a comunicação social de todo o mundo seguiu as peripécias do confronto com grande entusiasmo. Fidel e o seu amigo Che Guevara tornaram-se heróis revolucionários, adulados pelas esquerdas europeias, mas também aceites pelas direitas, verdade se diga.
O facto é que a Cuba comunista foi durante anos um caso de sucesso. Por um lado, deu aos seus habitantes dignidade, saúde e habitação. Por outro, enfrentou bravamente os imperialistas norte-americanos, que tentaram assassinar Fidel e até invadir a ilha, em 1961 – o chamado “Incidente da Baía dos Porcos”. O país tornou-se assim um exemplo de como o comunismo podia melhorar a vida das pessoas e também de que a América latina conseguia fazer frente aos odiosos imperialistas. Há toda uma geração de esquerda que via Cuba como um farol, um exemplo a seguir.
E os cubanos começaram a exportar a sua revolução por toda a América Central e do Sul. Não chegaram a derrubar os regimes sustentados pelos norte-americanos, mas conseguiram desestabilizá-los bastante, criando guerrilhas em vários deles e inspirando revolucionários noutros. Che Guevara, o líder desta internacionalização, foi morto na Bolívia em 1967.
E até enviaram tropas para o Iémen (Guerra de Ogaden) e para Angola, para apoiar o MPLA contra uma invasão da África do Sul. A União Soviética tinha agora uma força a seu favor que não a obrigava a intervir directamente. No equilíbrio periclitante da Guerra Fria, Cuba era a única ficha russa no Ocidente.
Essa ligação culminou com a chamada “Crise dos Mísseis”, em 1962, quando os americanos descobriram que os russos estavam a montar bases de mísseis na ilha, mesmo à porta dos Estados Unidos. O ex-quintal das máfias americanas era agora uma ficha fundamental, e chegou a ameaçar a paz mundial.
Há muitas teorias sobre o facto de Krutchev ter cedido perante Kennedy. O mais provável é que, por baixo da mesa, se tenha chegado a um acordo de última hora: os Estados Unidos desmantelavam as bases que tinham na Turquia a troco de a União Soviética não instalar as suas em Cuba.
De qualquer modo, este foi o momento alto de Fidel e de Cuba no xadrez mundial. O embargo de 1962, o fim da Guerra Fria e a queda da União Soviética deixaram a ilha entregue a si própria.
Só em 2009 é que o Presidente Barack Obama aliviou o embargo económico à ilha, segundo ele porque nunca faria cair o regime. Na realidade nessa altura os norte-americanos já tinham aceitado que Cuba era um caso perdido, os milhares de refugiados cubanos nos Estados Unidos faziam pressão para poder visitar os familiares e o “perigo comunista” das Américas Central e do Sul já não era nem uma “ameaça”, nem uma prioridade.
O fim – parcial – do embargo trouxe uma muito necessária fonte de receita para o regime, o turismo. Aliás, a grande diminuição do fluxo turístico devido à pandemia é uma das razões que trouxeram de novo a escassez. O fim dos Castro (Fidel morto, Raul reformado) também tem um forte efeito psicológico. As ditaduras de direita, centradas num homem, morrem com ele; as ditaduras de esquerda, mantidas por um partido, morrem de velhas.
Este é um momento muito triste para os velhos esquerdistas que sempre usaram as t-shirts e as boinas com a foto de Che Guevara como sinal de inconformismo.
Como diz no Facebook o Professor Rui Bebiano, da Universidade de Coimbra: “O governo culpa apenas os «contra-revolucionários» e os Estados Unidos, procedendo a centenas de detenções, enquanto os seus amigos espalhados pelo mundo — fiéis de uma «lenda de Cuba» que contra factos e evidências vai sobrevivendo — responsabilizam o embargo à ilha por todos os problemas. É certo que os efeitos desta medida se repercutem sobretudo na maioria da população, mas afinal bastaria um sinal de inequívoca abertura política do regime de partido único para que caíssem por terra os argumentos que têm servido de suporte à injusta posição norte-americana. Se o regime é tão apoiado pela larga maioria dos cubanos como os próprios governantes e muitos apoiantes de fora do país proclamam, nada haveria a temer. E talvez a vida pudesse correr melhor.”
Há que inventar novos ícones.
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