A União Europeia (e nós, dentro dela) está a atravessar uma crise energética sem precedentes, e parece não haver soluções políticas e técnicas que a aliviem, porque a questão não é política nem técnica. Não, a questão é monetária – o “vil metal” ou, para dizê-lo duma forma menos poética, os interesses dos operadores do mercado de Energia que determinam os dados da equação.
Por “operadores”, não estamos a falar das distribuidoras cujas contas, cada vez mais elevadas, nos chegam mensalmente. Referimo-nos a operadores num termo mais abrangente, que inclui os produtores, transportadores, distribuidores, banqueiros e ainda uma classe de que raramente se fala, os corretores (“brokers”) que intermedeiam os negócios de todos os outros.
Acaba se ser publicado em português o livro “O Mundo à venda”, que precisa de 526 páginas de minuciosa investigação para demonstrar como esses brokers decidem as transacções faraónicas que condicionam o consumo de Energia. Esqueçam a Guerra da Ucrânia em particular, ou o aquecimento global em geral; são estas maquinações que contam.
Até meados do século XIX o conceito actual de Energia nem existia. Usava-se a força animal (das pessoas e das bestas), o vento (nos moinhos) e a água (nos alcatruzes). Depois veio o carvão e o vapor, a seguir o petróleo e a electricidade, e o mundo entrou num processo de industrialização acelerado, a precisar sempre de mais Energia – até chegarmos aos “nossos tempos” em que mais produção significa mais necessidade, e a necessidade não pára de aumentar. Inventaram-se novas fontes, as barragens, as eólicas, a fusão nuclear, o gás (natural ou produzido) e pesquisam-se ainda outras, como o hidrogénio e a fissão nuclear. Todas têm vantagens e inconvenientes – mas, sobretudo, todas têm um custo, e é esse custo que condiciona a sua utilização.
Tanta necessidade levou à compreensão de que certas formas de Energia são nocivas, ou porque não se renovam, ou porque destroem o planeta, mas estamos longes do tempo em que a nocividade é mais importante do que a receita – se chegarmos a tempo a esse tempo!
Estas realidades, o mundo inteiro sabe. São discutidas tantos nas mais poderosas chancelarias como no café da esquina. Também é do conhecimento geral que a Energia se uma arma estratégica vital.
Ironicamente, o espaço económico/cultural mais desenvolvido do mundo, a União Europeia, parece que não sabia. Tornou-se dependente do exterior para suprir as suas necessidades energéticas, sem ter meios (diplomáticos e militares) para garantir as fontes. Muito simplesmente, entregou a sobrevivência aos vizinhos, sem querer saber se eram inimigos.
O resultado está à vista. Por acaso foi provocado por um inimigo em particular, a Rússia, mas poderia ter vindo de outros. E, na verdade, o actual défice energético não se deve especificamente ao Sr. Putin, mas a um conjunto de fornecedores que nunca foram de confiar (estou a pensar em Mohamed bin Salman, por exemplo) e também a um conjunto de mega-empresas, algumas no nosso seio, que sempre se interessaram mais em ganhar rios de dinheiro do que em proteger valores ou sustentar a natureza – e aqui estou a pensar na Exxon-Mobil, BP, Chevron, etc. Também estou a considerar os movimentos ambientalistas que demonizaram a Energia nuclear, limpa e segura, e no nacionalismo populista dos políticos que, como Macron, impedem a criação duma rede de gasodutos de ponta a ponta do continente.
E convém não esquecer os organismos supranacionais, como a OPEC (da qual a Rússia faz parte), que acaba de reduzir a produção de petróleo para subir os preços.
Agora, que a Energia é escassa e o inverno vem aí, cada país tenta resolver mais ou menos atabalhoadamente o problema premente para as empresas e os cidadãos. Aqui em Portugal queixamo-nos amargamente das medidas do Governo, mas, se formos olhar para as medidas dos outros governos, progressistas ou conservadores, liberais ou iliberais, não há grandes diferenças.
Treze países optaram por baixar os impostos na gasolina, desde seis cêntimos por litro no Reino Unido a 35 cêntimos em França. Outra opção é baixar o IVA dos combustíveis, como fizeram a França, os Países Baixos e a Polónia. Alguns cortes, tidos como temporários, já foram alargados. A Espanha, que ia suspender uma taxa de 7% no preço dos pequenos geradores (domésticos e industriais) adiou a medida para 2023.
Nesta competição pela Energia – no século XXI, sem Energia não há Vida – é cada um por si e nem o tão apregoado consenso que rege a União Europeia consegue evitar o salve-se quem puder. Por exemplo: Portugal e Espanha são abastecidos de gás natural pela Nigéria através de Marrocos, portanto não têm problemas de fluxo. Mas têm o problema dos custos, porque a escassez mundial aumenta o valor de mercado. Por outro lado, não podem fornecer o resto da Europa, que até pagaria o custo mais alto, porque a França não quer que se construa um gasoduto nos Pirinéus, para não baixar indirectamente o valor da sua electricidade produzida em centrais nucleares.
Quanto ao petróleo, encontra-se em grande quantidade e qualidade na Líbia, aqui tão perto; mas a Líbia actualmente é um estado falhado, em guerra civil constante, com uma produção incerta.
A Comissão Europeia decidiu deixar de importar a maior parte do petróleo da Rússia em Dezembro – sim, ainda o importa! O resultado é que na semana passada o preço do gás natural (um produto ligado ao petróleo) subiu dramaticamente. Imediatamente, os países da OPEC (onde a Rússia está incluída) decidiram cortar a produção de petróleo, para “estabilizar” os preços... A redução é de 100 mil barris por dia, apenas 0,1% da procura global, mas o suficiente para “assustar os mercados”.
O preço por atacado do gás está actualmente nove vezes mais caro do que no ano passado; o preço da electricidade, que está atrelado ao gás, também subiu; no conjunto da UE, o preço do gás e da electricidade poderá subir de 200 mil milhões de euros, antes da crise, para 1.400 mil milhões de euros nos próximos doze meses.
A única opção é tentar reduzir o consumo durante a noite, ao mesmo tempo que se debate aumentar os impostos das petrolíferas – porque as petrolíferas estão a ter lucros fantásticos com a crise, coitadinhas.
No entanto há um pormenor quanto aos preços ao consumidor. Se os preços não subirem muito (através de subsídios estatais ou de um limite aos lucros das petrolíferas), os consumidores não se sentirão na disposição de consumir menos. Foi o que aconteceu na Hungria, onde a redução de custo levou a um enorme aumento do consumo.
Mesmo assim, a Grécia decidiu fazer isso mesmo, cobrir 94% do consumo doméstico – o que, evidentemente não sai de graça aos consumidores, pois representa um aumento do orçamento estatal de cerca de dois mil milhões de euros. A Noruega vai mais longe, pagando 90% dos consumos domésticos até Março de 2023 – ou seja, os consumidores pagam pouco pela Energia, mas têm de cobrir com os impostos mais do que 700 mil milhões de coroas dinamarquesas.
Quem não parece ser atingido por esta montanha-russa são os tais “brockers”, que ganham tanto na quantidade como no valor. Nem os bancos, que emprestam milhares de milhões no mercado de futuros, com um juro que a inflação faz aumentar constantemente.
Que concluir de tudo isto? Não vale a pena chorar ou gritar o mantra de que “os ricos ganham sempre com a crise”. Chorar gasta Energia; e os ricos não vão deixar de sê-lo nos tempos mais próximos. Talvez um retorno à natureza – viver no campo, iluminar-se e aquecer-se a lenha. Não muito, porque o carvão polui a atmosfera...
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