1. No momento em que começo esta crónica, há notícia de que as “toupeiras” humanas ainda lutam para salvar uma criança, a quem chamaram “Frida” porque isto se passa na Cidade do México. O corpo de “Frida” terá sido detectado por um sensor térmico, no meio das ruínas de uma escola, horas depois do terramoto que atingiu violentamente a cidade, derrubando dezenas de edifícios, matando quase 240 pessoas até à hora em que escrevo.

Uma das alas da escola simplesmente ruiu com muitas crianças lá dentro. Algumas escaparam, trepando por paredes, entre escombros. Outras foram retiradas com vida. Mais de 30 já estavam mortas. E haverá as que continuam em lugares inacessíveis. Depois de detectarem “Frida”, as brigadas de resgate conhecidas como “los topos” ter-se-ão aproximado o bastante para falarem com ela através de um buraco de 45 centímetros, relatam as notícias. “Frida” terá ficado presa debaixo de uma mesa de pedra, terá dito que estava bem, mas com sede: que não demorassem. O mais pequeno dos “topos” terá tentado furar pelos escombros para a alcançar, em vão. Terão feito chegar uma mangueira a “Frida”, ela terá conseguido beber.

Esta escola, Enrique Rébsamen, fica no centro da cidade, a uma caminhada da Condesa, meu primeiro bairro no México, em 2010. Quando as notícias do terramoto me chegaram, a imagem que vi antes de todas foi a de um prédio acabado de ruir na Condesa. Os vídeos que já circulavam eram fulminantes. Gente na rua com os seus telefones, de repente um edifício começa a balançar, bocados da fachada caem, em segundos tudo se abate, num nevoeiro amarelo. As pessoas transformam-se em fantasmas gritando “Dios mio!”, correndo às cegas, tossindo. Prédios inteiros desfeitos, pontes a despencar, vidros a explodir, desmoronamentos, rachas, buracos, o terror vindo do céu, do chão, de toda a parte. Depois, os primeiros socorros, relatos de resgates dramáticos, membros que tiveram de ser cortados para puxar o corpo, as primeiras contagens de feridos e mortos, a contagem decrescente da possibilidade de vida.

Muitas horas depois, na Escola Enrique Rébsamen, pais penduravam-se em árvores tentando acompanhar o trabalho heróico de “los topos”, na esperança de verem os seus filhos resgatados, enquanto cada vez mais cadáveres iam aparecendo. Alguns pais conseguiam comunicar por WhatsApp com as crianças presas. Difícil pensar em impotência maior. Voluntários iam anotando o nome dos mortos. E, desde a primeira hora, cadeias humanas para remover o entulho, ajudar no salvamento, trazer água ou comida, montar tendas ou abrir a casa a quem ficou sem tecto.

2. À hora a que escrevo, o furacão Maria continua a ameaçar o Caribe, que já fora varrido pelo terrível Irma. Após o terramoto na Cidade do México (que também afectou Morelos e Puebla) já houve outro no Japão. A qualquer momento há “Fridas” para salvar no mundo. Não temos espaço, tempo nem coração para todas da mesma forma, nem isso seria humano. Por diferentes razões nos comovemos mais com umas. E se uso a palavra comovente é por ser uma das primeiras que associo ao México. Impossível ter notícias como as deste terramoto sem isso alterar o meu dia, porque o México anda comigo desde que lá pisei pela primeira vez, em 2010.

Já andava antes de eu ir, de certa forma: a forma que os lugares têm na nossa cabeça quando os imaginamos a partir dos livros, dos filmes, da música. Mas, em 2010, no instante em que o avião desceu até avistarmos a Cidade do México — aquele manto interminável de aldeias costuradas a aldeias, que no tempo dos aztecas foi uma ilha, e sobre a qual o império espanhol ergueu o seu domínio —, alguma coisa aconteceu no meu coração (como diz uma canção de Caetano Veloso sobre outra grande cidade da América Latina, São Paulo). Era assustador e fabuloso.

E, desde o primeiro instante em que pisei a cidade, o México arrebatou-me. O primeiro albergue onde dormi no bairro da Condesa tinha uma cama de espuma e outros problemas, mas também uma Frida Khalo na parede, que logo tomei de amuleto. Ao sair de manhã, já havia uma fila de crianças fantasiadas à porta de uma livraria gigante, que fora um cinema, e uma delas, vestida de coelho, perguntou-me: e tu quem és? Isto, claro em espanhol, mas não só: naquele espanhol que se fala no México, cheio de “onda” e “ahoritas”, que dá vontade de abraçar quem fala. Depois, a estação de metro chamava-se Patriotismo, e nunca esquecerei aquela enxurrada de humanidade, tanta pele, tanta gente, todos descendentes do momento em que Velho e Novo Mundo embateram, o novo abrindo os braços ao velho, Moctezuma acolhendo Cortés, abraço mortal.

Da Condesa mudei-me para junto do Zócalo, praça que é o centro da cidade e do país, síntese das lutas e dos lutos do México. Escrevi sobre tudo isso num livro, não me quero repetir, apenas dizer que em nenhum país me aconteceu tanto em tão pouco tempo, de um modo que literalmente mudou a minha vida. Isso vem, sem dúvida, da gente, estas pessoas que agora se acudiram umas às outras mal a terra parou de tremer. Mas também do que esta terra guarda, para o mal e para o bem, natureza e história, magia e erro.

Subjectivamente, para mim (e tantos mais), mas também objectivamente, na história e na geologia, o México é um lugar especial da Terra.

3. Em geologia chama-se subducção: o ponto em que uma placa tectónica se está a afundar por baixo de outra. A tensão desse movimento pode libertar energia sob a forma de terramotos muito intensos. Os mais fortes, aliás, acontecem nessas zonas. Alasca, Indonésia, Chile, Japão ou México são alguns exemplos.

No México, uma placa oceânica, a Cocos, está a afundar-se por baixo de uma placa continental, a Norte-Americana. O terrível sismo de 1985 continua bem presente na memória da Cidade do México, mais de 10 mil mortos. Todos os anos se assinala com um ensaio de emergência. Por uma espantosa coincidência o terramoto desta semana aconteceu exactamente no dia do aniversário, apenas duas horas depois do ensaio. Vidas terão sido salvas por estar tão fresco o que fazer. E, menos de duas semanas antes, a terra tremera mais a sul, Oaxaca, Chiapas, mundo tão indígena a caminho da selva, herdado de olmecas e maias.

O sismo de há duas semanas foi de 8,1 na escala de Richter, o de agora 7,1, mas este segundo matou mais porque o epicentro estava próximo de uma grande concentração urbana. As regras de construção e reabilitação são mais exigentes do que em 1985. De todo o modo, a fricção tectónica está lá, debaixo dos pés, e o facto de a Cidade do México assentar numa bacia de sedimentos, não em pedra, torna-a mais vulnerável.

De resto, no México e não só, a acção humana também se soma à destruição natural, desde os subornos que contornam as leis à forma como se constroem barragens, se extraem minérios, se detonam explosivos, ou fazem testes nucleares. Não estamos apenas na mão da natureza quando se trata de catástrofes. A mão humana contribui, na origem ou na escala das consequências.

4. O fantasma de um terramoto está no ADN português. Em 1755, a terra quase engoliu Lisboa. Se um sismo dessa intensidade (algo entre 8,7 e 9) se repetir, parte da cidade pode ficar em escombros, com milhares de mortos e dezenas de milhares de desalojados, têm alertado cientistas. Não apenas a zona ribeirinha é pantanosa, mais vunerável, como há uma fractura em formação ao largo da costa sudoeste portuguesa. Um sistema de subducções fechou o Mediterrâneo, existe por baixo de Gibraltar, e a revelação da nova fractura junta-se a isso.

Não se trata de gerar o pânico, ao contrário, de saber que tudo o que fizermos agora pode salvar alguém. Por causa da tal fractura ao largo da costa portuguesa, é geologicamente provável que daqui a uns 220 milhões de anos o Atlântico desapareça. Mas isso é mesmo um bocado de tempo, e não há mudanças previstas para Marte, entretanto. O que pode ser cuidado é para cuidar já.

5. Antes de terminar, busco as últimas notícias de “Frida”. As autoridades mexicanas estão confundidas, dizem que não sabem de onde veio a história, que não há mais crianças por resgatar, que talvez se tratasse de uma mulher, uma fusão de figuras. Parece que afinal “Frida” não existiu, mas foi o amuleto de toda uma cidade. O que não deixa de estar estranhamente certo, porque existiram muitas ao longo destas horas. E, como isto se passa no México, algumas até se chamariam Frida.