Se olharmos para o mapa das línguas latinas na Europa, parece faltar um pedaço. Por que razão não há línguas latinas na zona entre a Itália e a Roménia?
Na verdade, não há, mas havia… Uma delas era o dálmata, uma língua latina falada até ao século XIX na Dalmácia, a região que é hoje a (linda) costa da Croácia. Dubrovnik, uma cidade de nome bem eslavo, chamava-se, nessa língua, Ragusa. Já Split era Spalato.
Era uma língua com algumas características curiosas. Por exemplo, sabemos que há muitas línguas latinas onde o «c» latino, antes do «e» e do «i», passa a ser lido de outra maneira. É o nosso caso: se os romanos diziam algo como «Quíquero» quando liam o nome de Cícero, nós usamos o som /s/ para ler os dois «c».
Esta transformação não ocorre em todas as línguas latinas. O sardo, por exemplo, mantém os sons latinos. Cícero continuará a ser algo semelhante a «Quíquero» na Sardenha. Já o dálmata faz a tal alteração – mas só antes do «i». Desta forma, Cícero seria lido como «Cíquero».
Quando olho para uma lista de palavras nesta língua que já ninguém fala, sinto aquela estranha comichão das línguas latinas: há coisas diferentes, mas que nos lembram, de alguma forma, a nossa língua. «Quando» era «kand», «pouco» era «pauk», «pesado» era «pesunt», «pele» era «pial» e «orelha» era «orakla». O pai-nosso começava assim: «Tuota nuester, che te sante intel sil, sait santificuot el naun to.»
Esta língua desapareceu quando Tuone Udaina morreu, em 1898, depois de ter descrito a um linguista a língua que ouvira da boca dos pais, embora já não tivesse qualquer contacto com a mesma há mais de 20 anos.
Esta é uma língua especialmente interessante, pois representa um dos elos perdidos entre o italiano e o romeno. No entanto, não é a única língua que desapareceu – aconteceu o mesmo a muitas línguas e dialectos em todo o mundo.
Porquê? Uma das razões será o facto de ainda estarmos a viver num período de uniformização: as línguas nacionais dos vários Estados-Nação têm uma presença cada vez mais forte na vida das pessoas – e, em certas regiões, chegaram às populações apenas no século XX. Basta pensar em Espanha, onde ainda há 100 anos era possível encontrar aldeias onde poucos saberiam falar espanhol. Mesmo em Portugal, se andarmos para trás umas quantas décadas, encontraremos um país onde os contactos entre gente de diferentes regiões e com diferentes maneiras de falar português eram em muito menor número do que hoje em dia.
Estes processos levam à uniformização gradual das línguas ou mesmo à eliminação de outras línguas concorrentes no mesmo território.
No caso do dálmata, o desaparecimento terá tido muito que ver com a expansão das línguas eslavas naquela região. Não houve nenhum Estado que escolhesse o dálmata como língua própria e, no século XIX, a República de Ragusa, onde o dálmata era uma das línguas principais, desapareceu.
O processo não parece especialmente grave. Todas as pessoas que por ali vivem estão felizes e contentes com as línguas actuais. Ninguém se sente mais pobre, hoje em dia, por falar croata e não uma língua latina. E, no entanto, pense o leitor o que sentiria se soubesse que a sua língua materna, aquela em que aprendeu a falar, estava destinada a desaparecer. Pense na figura do último falante: como se sentirá uma pessoa com uma língua na cabeça que não pode usar com ninguém? O que sentirá a última pessoa, a quem aquelas exactas palavras lembram as praias de Ragusa ou o som do vento naquelas belas costas da Dalmácia?
Há quem não queira saber. A língua desaparece e pronto. A morte duma língua, se não for sinal da morte violenta dos seus falantes (o que já aconteceu), pode ser um processo natural e pouco dramático. Para alguns daqueles que têm esta atitude de desdramatização, o desaparecimento das línguas é um passo necessário para resolvermos este problema da humanidade: o facto de não nos entendermos – estes ingénuos esperam o dia em que todos falemos a mesma língua para ver o mundo em paz.
Ora, apesar do processo recente de unificação linguística a reboque da expansão do Estado-Nação nos últimos 200 anos, a verdade é que as línguas se separam quando há barreiras políticas, geográficas ou sociais. Se todos os países começassem a falar inglês, por exemplo, rapidamente esse inglês começaria o processo de transformação em novas línguas, que talvez se ficassem pelas conversas de rua – com um inglês unido como norma na escrita e nas escolas – ou talvez se tornassem, mais cedo ou mais tarde, em novas normas. Foi o que aconteceu ao latim, no fundo. Haveria forma de evitar que a língua mundial se estilhaçasse? Dificilmente: só um governo mundial com mão de ferro no que toca à variação linguística podia – talvez – impor uma só língua durante séculos e séculos.
Temos, depois, a atitude oposta: há quem comece a debitar discursos sobre mundos que se perdem para sempre, ou mesmo almas nacionais que desaparecem... Tudo isso me soa a uma estranha linguística sobrenatural, como se a língua fosse uma entidade sagrada. Ora, o desaparecimento duma língua é, de facto, uma perda, mas é preciso escavar um pouco mais para perceber quais os motivos. Em primeiro lugar, quando uma língua desaparece, há menos interesse em proteger uma tradição literária e uma série de textos escritos nessa tradição. Há textos do passado que se perdem porque ninguém se lembra deles.
Depois — e esta razão talvez seja menos clara, mas não menos importante — com a morte de uma língua perdemos os textos que não serão escritos. Isto porque todos os textos podem ser traduzidos, mas muitos deles nunca teriam sido escritos noutra língua…
Pensemos, por exemplo, n’Os Lusíadas. É possível traduzir a epopeia de Camões? Sim, claro: há inúmeras traduções, cada uma delas com os seus defeitos e qualidades, mas que estão aí, presentes, mostrando que o texto não é inacessível aos leitores de outras línguas – e se dissermos que cada tradução é incompleta, lembremo-nos, depois, que cada leitura é sempre incompleta e que, talvez, até seja mais fácil a um leitor duma tradução chegar a determinados sentidos que o leitor português já não encontra nas palavras quinhentistas.
Dito isto, aquele poema foi criado com uma fórmula particular, um número de sílabas por verso, rimas certas, estrofes bem montadas. Pode ser traduzido, mas nunca teria sido escrito daquela maneira noutra língua. O próprio conteúdo seria outro. A maneira particular como cada língua pega nos sons para criar palavras empurra os autores para esta ou aquela solução, para determinada frase, para determinada história – ou representa até um problema particular, que incita o autor a procurar novas maneiras de ver e dizer.
Depois, os tradutores pegam nos originais e criam textos na sua própria língua que trazem algumas ideias novas, maneiras diferentes de contar uma história e, de vez em quando, até uma perspectiva original sobre o mundo – e tudo isto pode ser traduzido e partilhado pelo mundo inteiro, mas talvez não existisse se não tivesse havido alguém que, dentro de determinada língua, imaginasse um texto particular, criado dentro duma determinada língua.
Digamos que as línguas se picam umas às outras – através da tradução – para criar novas maneiras de ver as coisas do mundo. É por isso que a morte duma língua é sempre uma perda para todos nós: há histórias que não serão contadas e textos que não serão escritos naquela língua – e em mais nenhuma.
Há países onde a profusão de línguas faz confusão a quem fala a língua maioritária. Porquê insistir noutras línguas que não a mais útil? Ora, a língua materna vale muito para quem a fala. Ninguém fica, aliás, preso à sua língua: os seres humanos sempre aprenderam várias formas de falar. Mas não é só para os seus falantes que cada língua é valiosa: se houvesse menos línguas, as possibilidades criativas do mundo seriam menores — e nem quero pensar se tivéssemos todos a mesma língua materna...
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. É autor da Gramática para Todos.
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