Antes de mais, vale a pena apresentar o tabuleiro do jogo, as peças e as regras. O Brasil é uma república presidencialista, à semelhança da norte-americana e da francesa, com um Congresso bi-cameral. Esse Congresso tem mais poderes do que nos outros sistemas presidencialistas, e o Supremo Tribunal Federal também tem possibilidade quase imediata de intervir na política nacional.
Os partidos políticos (ou “legendas”) distinguem-se da maioria das democracias parlamentares em vários aspectos.
Primeiro, são muitos: 32, actualmente. Para simplificar, vamos referir-nos a eles pelas iniciais (“sigla); o leitor que tenha dúvidas pode recorrer à caixa que dá apoio a este texto. Na reimplantação da democracia, em 1980, havia apenas cinco partidos, mas ao longo destes anos tem vindo a multiplicar-se exponencialmente.
Segundo, os partidos nascem e morrem rapidamente – com excepção dos tradicionais – e mudam de nome, o que torna mais difícil saber quais são quais.
Terceiro, os políticos mudam de partido conforme os seus interesses. Ciro Gomes, por exemplo, já vai na sétima filiação. A mudança de partido, que na maioria das democracias ocorre raramente e é muito mal vista, no Brasil é um facto corrente, que normalmente não provoca engulhos.
Quarto, o grande número de partidos obriga sempre a coligações. Mesmo quando um Executivo é dito como monopartidário (PT, por exemplo), na realidade apoia-se em vários partidos mais pequenos, a troco de favores vários e posições no elenco ministerial, o que obriga a gabinetes presidenciais muito grandes. O primeiro Governo de Dilma Roussef, em 2011, tinha 37 ministros.
Quinto, no Congresso, os partidos aliam-se de forma semi-permanente ou pontualmente para uma votação. Estas alianças, conhecidas como “bancadas” são informais, mas têm muita força. É o caso da bancada evangélica, que alia os eleitos dependentes das diversas igrejas “cristãs” que dominam o panorama religioso do país. No lado oposto do espectro político, os índios, que têm um único representante no Congresso, pretendem criar uma “bancada do cocar”, e vão apresentar este domingo quarenta candidatos à câmara, e um ao senado.
É neste cenário complicado, com regras frequentemente mudadas, que se movem forças regionais e corporativas, interesses económicos e os próprios políticos.
Na presente eleição conta-se, entre onze candidatos, com os recém-chegados (Simone Tebet, MDB), os auto-inventados (Léo Pericles, UP) e os que cumprem militância ideológica (Sofia Manzano, PCB). Alguns históricos, entre bons (Fernando Henrique Cardoso, PSDB), maus (Fernando Collor, PTB) e muito maus (José Sarney, MDB), já estão velhos demais para novas aventuras.
Mas há dois históricos que se mantêm no activo: Geraldo Alkmin (PSB) e Ciro Gomes (PDT). Ambos têm longa experiência e são considerados honestos para os padrões nacionais – algumas suspeitas aqui, certas acusações ali, processos adormecidos acolá, mas nada que lhes manche a dignidade republicana.
Alkmin aliou-se a Lula como candidato a vice-presidente. Faz sentido para os dois. Geraldo, não podendo ganhar, fica próximo do poder e há alguns casos em que vice-presidentes ascenderam a presidentes por variadas razões (morte, impeachment...). Lula, ao escolher um candidato social-democrata (digamos...) e católico, alarga a sua base eleitoral na classe média e entre empresários, suavizando a imagem radical. Alkmim, que tem um currículo de dureza com a criminalidade, também pode apelar aos bolsonaristas menos radicais – caso existam.
Ciro Gomes manteve a decisão de concorrer pelo seu partido actual, o PDT. Esta decisão, surpreendente, uma vez que pelas últimas sondagens (de quinta-feira) tem apenas 6% dos votos, levanta a questão, sempre presente, do voto útil.
Já ocorreu uma situação semelhante, mas em circunstâncias diferentes. Na eleição presidencial de 2018, o PT, desmoralizado pelos escândalos da sua governação, que culminaram com o impeachment de Dilma Roussef dois anos antes, ainda por cima apresentou um candidato com pouco carisma, Fernando Haddad. A direita, com a bancada evangélica em peso, uniu-se em torno do deputado Jair Bolsonaro, já nessa altura visto como um furacão pernicioso e perigoso. O eleitorado também deu a Ciro votos suficientes para impedir que a eleição se resolvesse na primeira volta. Mas, aquando da segunda volta, Ciro ausentou-se para Paris, sem endossar Haddad, dando a eleição a Bolsonaro sem discutir. Disse mais tarde, expressamente, que não queria apoiar o candidato petista. Ou seja, contribuiu indirectamente para a vitória de Bolsonaro, o que pesa no seu currículo, até hoje.
Mas o quadro de 2018 é completamente diferente de 2022. Desta vez a disputa é abertamente entre o PT e os partidos bolsonaristas, e Lula está à frente. Votar em Ciro é um voto inútil que poderá impedir Lula de ganhar as eleições logo à primeira volta.
Ciro alega que tem o seu programa e o dever de continuar a candidatura, como se não percebesse que pode levar o país à segunda volta das eleições. Lula ganhará de certeza, mas a questão que se põe é que uma segunda volta poderá será muito mais radicalizada e, logo, violenta.
Esta atitude de Ciro Gomes, por mais incompreensível que pareça, tem várias explicações, dependendo de quem explica. Os cirences, claro, acham que ele está a ser coerente com os seus princípios. Mas entre os não-cirences debate-se se ele não estará a fazer uma jogada a longo prazo: como Lula não concorrerá às eleições de 2026 – já o disse, alegando que terá 81 anos – e Bolsonaro decerto sairá da política depois desta derrota, o campo ficará livre para Ciro ter o apoio da direita contra uma esquerda que não terá ninguém tão carismático como Lula.
Parece uma ideia surreal? Bem, na política brasileira, a realidade e a surrealidade são igualmente prováveis...
Oficialmente, Ciro Gomes tem uma carreira política sempre ascendente. Foi foi vereador (na cidade de Sobral, no Ceará, onde o pai era o Prefeito e soba), procurador público aos 23 anos, deputado estadual pelo Ceará dois anos depois, pelo PDS (o partido de direita que sucedeu ao Arena da Ditadura Militar), Prefeito de Fortaleza, a capital do Estado, aos 31 anos. Saiu antes do fim do mandato para ser Ministro da Fazenda de Itamar Franco, e como tal responsável pelo famoso Plano Real que travou a galopante inflação brasileira. Aderiu ao PSDB, de Fernando Henrique Cardoso, que usou os benefícios do seu plano para finalmente estabilizar a economia, mas zangou-se logo a seguir com Cardoso e concorreu contra ele nas presidenciais de 1998.
Quando Lula se tornou presidente, em 2002, chamou-o para Ministro da Integração Nacional, mas acabou zangando-se também com ele, e foi para o PSB.
No impeachment de Dilma Roussef ficou ao lado dela e atacou violentamente o golpe de Michel Temer.
(Se esta mini-biografia lhe parece confusa e pouco divertida, veja a apresentada pelo impagável Gregório Duvivier no programa Greg News. Não só dá muito mais pormenores sobre a carreira de Ciro, como comenta inteligentemente o lado não oficial, que é a personalidade do político.)
São esses os aspectos mais peculiares de Ciro: foi da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, ao sabor dos tempos e dos partidos que mais lhe convinham, mas tem um projecto só seu, único, que está publicado no livro “Projecto Nacional: o dever da esperança” e que é, basicamente, um projecto social-democrata e desenvolvimentista que levaria o Brasil para um futuro radioso. Sempre o defendeu e continua a defender, mas na realidade deve saber que nunca acontecerá. E não acontecerá porque Ciro sempre se incompatibilizou com todos os partidos e dirigentes com que teve relações – desde Fernando Henrique a Lula – e, portanto, nunca terá os apoios que seriam necessários no sistema político brasileiro para poder ser aplicado.
Nem sequer é um plano original; trata-se de uma súmula de todos as apostas bem-sucedidas da social-democracia, com uma base keynesiana e socializante, que já foram executadas em muitos países.
O outro aspecto é essa belicosidade com que ataca tudo e todos, usando, aliás, um vocabulário ordinário, violento e cheio de palavrões que ficam muito mal a uma pessoa com estatuto institucional. Fala para a nação como se estivesse a discutir numa tasca, com um estilo que só pode ser visto como populista. Não que não tenha razão no que diz, a maioria das vezes; simplesmente não pode ser dito daquela maneira.
É opinião geral que desta vez Ciro deu um mau passo ao insistir numa candidatura sem hipótese, e que o fará passar por uma travessia do deserto. Mas os desertos são finitos, sobretudo na política brasileira.
Ciro, estando acabado por ora, decerto não estará morto no futuro. Outras voltas e reviravoltas ocorrerão, e decerto ainda vamos ouvir falar dele. Afinal de contas, o “projecto nacional da esperança” não é uma má ideia...
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