O Zé Duarte era o único morador, numa casa com vista para o Tejo e a Outra Banda, num prédio de cinco andares numa esquina do bairro da Lapa, em Lisboa. Conversar como ele – de facto, ouvi-lo a falar – era um gosto maravilhoso e uma lição sobre como cultivar o que é estimulante na vida. Sempre com ironia, subtil. Podia ser cáustico, mas sempre com uma piscadela de olho.

Gostava muito de pessoas. Adorava as duas filhas e ficava feliz sempre que calhava poder almoçar ou jantar com elas. Ia para o restaurante de táxi e várias vezes lhe aconteceu o motorista reconhecer-lhe a voz afetuosa e grave: “o senhor é o jazz, não é?”, esta pergunta de um taxista deixou-o de peito cheio.

Ele gostava dessa ideia de ser o jazz. Ele sabia que o jazz cresceu em Portugal porque ainda antes do 25 de Abril esta música teve quatro mosqueteiros a cultivá-la apaixonadamente: Luís Vilas-Boas, Duarte Mendonça, Raul Calado e ele, José Duarte. Poderíamos juntar Manuel Jorge Veloso, os Moreiras, Rui Neves e outros. Mas aqueles quatro primeiros são o jazz, foram eles quem trouxe o jazz a Portugal. Desafiaram a ditadura nos festivais no já abatido pavilhão do Dramático de Cascais, sempre a abarrotar.

Há uma história que mostra como o Zé  Duarte quis sempre encontrar o lado melhor da realidade da vida. Em 1971, José Duarte foi a um festival de jazz em Varsóvia e, para além do prazer de escutar a música preferida, levava a missão de convidar o virtuoso contrabaixista Charlie Haden para participar no primeiro dos festivais de Jazz de Cascais. Abordou Haden e puseram-se à conversa – toda a gente gostava de conversar com o Zé Duarte. Quando apareceu o convite, Haden começou por recusar em tom perentório, argumentou algo como “Portugal é uma ditadura fascista, pratica uma guerra colonial terrorista, nem pensar”. José Duarte contrapôs: “Os fascistas são os que estão no governo e à volta dele; no país há as pessoas que merecem poder vibrar com música de liberdade”. 

Zé Duarte convenceu Charlie Haden, que atuou no Jazz em Cascais na noite de 20 de novembro de 1971, juntamente com o quarteto de Ornette Coleman. Cartaz de luxo no jazz mundial. Haden avisou Zé Duarte de que iria dizer o que achava dever dizer. E assim foi: já no final da atuação Charlie Haden dedicou um tema aos “movimentos de libertação de Angola e Moçambique”. A PIDE, em versão DGS, tinha gente na sala e, claro está, logo se posicionou entre o palco e os camarins e deteve Haden.  Zé Duarte foi atrás do carro dos polícias e tratou de mobilizar tudo para libertar Haden. Naquele tempo ainda não se pensava em telemóveis. Valeram cabines telefónicas entre Cascais e o Chiado. A embaixada dos EUA foi envolvida e mexeu-se. Charlie Haden viria a ser libertado mediante uma declaração de “arrependimento”. Mas no disco que editou logo a seguir, Closeness, incluiria a canção que dedicou em Cascais aos movimentos de libertação, Song for Che.

Ficaram amigos. Zé Duarte viria a ser mediador, juntamente com Rúben de Carvalho, de uma parceria que levou a uma parceria entre o contrabaixo de Charlie Haden e a guitarra de Carlos Paredes, com base numa Festa do Avante, a de 79.

José Duarte foi reconhecido por muitos dos grandes  do jazz. É um nome grande na grande tribo.

Foi mestre a divulgar o jazz pela rádio. Antes do lendário Cinco Minutos de Jazz, em o Jazz, Esse Desconhecido, A Menina Dança ou o Pão com Manteiga. Este um programa feito com Carlos Cruz, Joaquim Furtado, Bernardo Brito e Cunha e outros é uma amostra exemplar do estilo de escrita de José Duarte: acutilante, minimalista, cheia de ironia. Tal como nos Cinco Minutos: nunca havia uma palavra a mais, nunca qualquer gordura no texto.

Ele escrevia o texto dos Cinco Minutos, sempre muito curto, a partir do teclado de um velho computador na minguada sala de trabalho ao fundo do corredor de casa. A casa é grande mas o espaço parece acanhado porque, mesmo depois de ter doado o extraordinário enorme acervo à Universidade de Aveiro, Zé Duarte continuava a ter todas as paredes de casa cobertas com discos, CDs, caixas de vídeos, cartazes, também fotografias e quadros.

Gostava de jogar um jogo: pensar pessoas estimadas e discutir quem é que tem swing, ou seja, dança no corpo. Tinha sempre bom gosto.

Procurava sempre o lado bom das coisas: o Sporting não estava brilhante mas ele encontrava sempre algum motivo para elogiar, fosse a a arte de Luís Figo, a eficácia e robustez do Mathieu ou a elegância (ele preferia) de Sarabia. E falava sempre com entusiasmo do swing em Yazalde e Sá Pinto. Leão, sempre, este senhor que é jazz. Ficou por comentar com ele, José Duarte, o swing que ele metia em tudo.

Arreliava-se com a gestão do Hot, mas torcia por bons cartazes.

Estive várias horas com ele, juntamente com dois amigos, Filipa Subtil e Paulo Barbosa, numa conversa para uma iniciativa académica, o Arquivo de Memória Oral das Profissões da ComunicaçãoSão várias horas de conversa, a percorrer a vida dele. O vídeo será publicado um dia destes, vai valer “ouver” o grande Zé Duarte.