O relato de como conheci a minha mulher é dotado de tão pouco romantismo que nem um gigante literário o poderia alindar. Eça descreveria a escuridão da sala e a humidade das paredes. Foi numa cave do Bairro Alto, entre empurrões e surdez precoce, em pleno concerto de punk hardcore. Coisas do século passado.
A história de como reconheci a minha mulher, essa sim, não tem paredes, nem empurrões, e é dotada do silêncio que precede os fados. Romântica, portanto. Era noite e, num pequeno muro plantado na areia do Pinhal de Leiria, a Raquel pegou numa guitarra e começou a dedilhar o acorde de Ré. Cantou a “Linger” dos Cranberries, mas desconstruiu os tempos da canção, arrastou a melodia nas alturas em que a desejou mais dramática, acelerou o dedilhado quando o tema queria apressar-se. Não está nada mal, conhecer-se assim alguém que já se conhecia.
É muito provável que a Raquel não se recorde do que relatei. Ao contrário de mim, não há grão de nostalgia nela. É um asseio de quem faz limpezas de primavera, enquanto eu ando para aqui a acumular papelada, galhardetes e caixas de sapatos. Mantenho uma reverência absurda pelo tempo extinto, já a Raquel é rica em indiferença. Com os anos, vim a perceber que a tal versão descompassada da “Linger” não era uma interpretação teatral e intimista, mas sim desinteresse natural pelo tempo das coisas, e uma falta de ritmo porque nem todo o ritmo (ao contrário do sonho) comanda a vida. As mãos da Raquel não conseguem acompanhar canções com palmas, mas são capazes de engendrar origamis complicados como quem estala os dedos – origamis que, sem qualquer pejo, vão pelas mãos da Raquel parar ao lixo, basta que o tempo deles se ache sem importância.
Poucos anos tinham passado desde o muro no pinhal, mas aquela distância curta entre a adolescência e a idade adulta parece medir-se em equivalência a anos de cão. No fosso destas idades, e com a mudança de século, a Raquel aparentava ter perdido a devoção teen pelos Cranberries. Agora namorados, a nossa banda sonora fazia-se mais de homens com pronúncias americanas do que de inflecções célticas na voz da Dolores O’Riordan. O passado, mais uma vez, recebia o desapego extremoso da Raquel, que até aparentou alguma indiferença quando lhe ofereci bilhetes para irmos ver os Cranberries à latada em Coimbra. Fez mesmo questão de chegar atrasada ao concerto - extremosa a desapegar-se do tempo, tanto o do passado como o do relógio. Mas comoveu-se mal entrou no recinto. Chorou do princípio ao fim. Lágrimas salgadas genuínas, não só feitas do vinho verde que tínhamos bebido nessa noite no Quim dos Ossos. Entretanto tornei-me num marido frouxo pela utilidade das prendas que dou; eu, que tanto prezo a memória, esqueci-me da eficácia de presentes emocionais como um simples bilhete.
Se me perguntarem se os Cranberries foram uma das bandas mais importantes da minha juventude, responderei instantaneamente que não. Mas é um instante de burrice, já que o embalo da memória me garante agora outra coisa: poucos grupos ter-me-ão marcado tanto quanto esta banda irlandesa (que eu esporadicamente ouvia). Nenhum outro grupo me plantou nos ouvidos a sensação de que eu todo sou metade incompleta. A porção que me faltava é assim: marimba-se para os tempos, desdenha nostalgias, apouca pontualidades e não deseja que o desnecessário se prolongue. Do you have to let it linger? Não – responderia ela.
Os únicos discos de Cranberries que tenho na estante chegaram-me via matrimónio. Tecnicamente não são meus, mas só porque na conservatória a “Comunhão de Adquiridos” ficava mais barata que a “Comunhão de Bens”. Ainda assim, no casal, sem legalidade que me acuda, sou o cultor de estilhaços no passado de ambos. Sou a parte fraca, portanto. A parte que se encanta com inutilidades.
Sinto-me como uma serpente hipnotizada e, nesta semana, a flauta do meu encantador toca o álbum “No Need to Argue” dos Cranberries. É um CD com a capa muito coçada, envelhecido, talvez depois de diversas viagens de avião ou uma qualquer odisseia em ferrovias (dentro e fora do comboio) – tudo pela mão descompassada da Raquel; nesses tempos eu andava em casa, quietinho a cuidar do estado de conservação dos meus discos, quietinho a viajar entre excessos de memórias. Hoje os CD's estão obsoletos, algumas recordações também. Mas que eu seja surdinho se esta não é uma semana para recordações, para chorarmos e homenagearmos a Dolores O’Riordan.
Há um murinho na curta extensão do Pinhal de Leiria que as chamas não consumiram, e há um CD coçado que jamais irá para o lixo onde vão parando origamis.
SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO
Noutro embalos, a memória fotográfica do camarada Araújo.
De todos os exercícios de memória a que me entrego, poucos são mais inúteis (mas também mais divertidos) do que recordar os flops benfiquistas dos anos 90. Este, afinal, parece ter-se tornado um craque aos 47 anos.
O grande Tiago Pereira na RTP Memória.
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