A poesia das estrelas

Um velho e uma criança são levados até um precipício. Vão de mãos dadas. Não sei se o mais velho será pai ou avô do mais novo. Sei que vão assustados, impelidos pelos gritos e empurrões de gente excitada, nos ritmos loucos duma cerimónia divina. O velho olha para as estrelas — e o neto não consegue tirar os olhos do precipício à sua frente.

Ali chegados, peço ao leitor que afaste o olhar. Não vale a pena ver o momento em que são empurrados para a morte, num sacrifício aos deuses.

Antes de explicar por que razão descrevi esta cena cruel, avanço uns bons séculos — até aos finais do século XX, num prado no Sul de França, numa noite estrelada. Tinha uns dezassete anos e estava a viajar longe do país, longe dos pais, sozinho com amigos.

Uma amiga olha para as estrelas e diz que a ciência está a destruir a poesia do mundo — ah, aquela idade é dada a este tipo de declarações, não é? Sorri e encolhi os ombros. Mas fiquei a matutar naquilo: pouco tempo antes, lera um relato da maneira como descobrimos a composição das estrelas e ficara siderado.

Se repararmos, o facto de sabermos de que são feitas as estrelas é qualquer coisa de extraordinário. Afinal, estão mesmo muito longe… O objecto humano que está mais longe da Terra é a Voyager 1, que anda a viajar pelo espaço à bonita velocidade de 40 quilómetros por segundo (!). Já está a viajar vai para quarenta anos… Terá chegado perto da estrela mais próxima? Nem por isso: se a Terra fosse Lisboa e a estrela mais próxima a China, a Voyager estaria agora a chegar a Vila Franca de Xira. O universo tem espaço para dar e vender. (Por acaso, a Voyager nem sequer vai em direcção à estrela mais próxima — que é Proxima Centauri — mas as distâncias relativas são mais ou menos estas.)

A substância das estrelas

Então, se estão tão longe, como é que sabemos a composição das estrelas? No século XIX, este era o tipo de coisas que se dava como exemplo de conhecimento impossível: ninguém poderia nunca vir a saber de que eram feitas as estrelas…

E, no entanto, lá encontrámos uma maneira de lá chegar, através da análise da decomposição da luz que nos chega das estrelas. Essa decomposição apresenta uns traços negros — as linhas de Fraunhofer. Estas linhas são uma espécie de assinatura dos materiais que compõem a estrela que as emite. Desta forma, conseguimos perceber de que são feitas essas longínquas bolas ardentes.

Foi precisa muita imaginação prática — e alguma sorte — para chegar a estas conclusões. Não foi invenção de ninguém em particular: a tecnologia e o conhecimento foram aumentando, devagar, aos tropeções, até chegarmos ao ponto em que era relativamente fácil dar o passo, apontar o telescópio para as estrelas, decompor a luz e ler as tais barras negras.

Será que isto tira poesia às estrelas? Enfim, cada um encontrará poesia em sítios diferentes. Tremo um pouco ao perceber que os mesmos materiais que saem das estrelas são aqueles que compõem os nossos corpos. Afinal, somos feitos dos restos das primeiras gerações de estrelas, que explodiram e criaram, assim, os materiais necessários para fazer os planetas. Para mim, isto também tem o seu quê de poético.

Os dentes dos sacrificados

Mas voltemos ao homem e à criança prontos a morrer, à luz das estrelas e das tochas, a tremer no suor das caras assustadas. Não há aqui poesia nem nada que nos valha: há a velha crueldade humana.

Lembrei-me deles — ou melhor, imaginei-os — ao ler um artigo a relatar as recentes investigações sobre a origem geográfica dos sacrificados num poço natural do México, perto de Chichén Itzá (o artigo “Who did the Maya sacrifice?”, na The Economist). Os esqueletos no fundo do poço eram de várias idades e dos dois sexos, mas será — perguntam-se os investigadores — que eram gente daquela zona ou seriam de outras paragens, talvez prisioneiros trazidos de longe?

Como saber? Como pegar em dentes que estão há séculos debaixo de água e descobrir o sítio onde cresceu aquela pessoa em particular? Parece tão impossível como descobrir de que são feitas as estrelas — mas lá conseguimos encontrar uma maneira.

Cada átomo tem um núcleo com protões e neutrões. O número de protões determina de que átomo estamos a falar. Por exemplo, o oxigénio (O) tem oito protões. Já o número de neutrões pode ser igual ao de protões — ou não. Diferentes números de neutrões determinam diferentes isótopos. Assim, um átomo de oxigénio com oito neutrões é o isótopo 16O (16 é a soma de protões e neutrões); um átomo de oxigénio com nove neutrões é o isótopo 17O; um átomo de oxigénio com dez neutrões é o isótopo 18O.

Pois bem: um isótopo de oxigénio com dez neutrões é mais pesado — assim, tende a cair na água da chuva mais cedo do que outros isótopos mais leves. Logo, as zonas mais costeiras — aquelas que recebem, em primeiro lugar, as tempestades — têm maiores concentrações de isótopos mais pesados no solo e nas plantas que se alimentam desse solo. Cada região tem, na verdade, uma concentração particular de isótopos. Ora, como esses isótopos acabam no interior dos dentes de quem come essas plantas, é assim possível determinar, com alguma precisão, em que região vivia determinada pessoa através da análise dos seus dentes, muitos séculos depois.

A imaginação e as palavras

O que descobriram os cientistas ao analisar os dentes? Descobriram que não havia uma origem preponderante: os sacrificados tanto eram daquela zona como de longe. Às vezes, as respostas que as investigações nos dão são menos limpas do que gostaríamos. O mundo, enfim, não é simples. Mas deixemo-nos levar pelo espanto que é ver esta série de pequenos truques a acumular-se até nos levar a descobrir o local de nascimento de pessoas que morreram há séculos.

Ao ler sobre esta investigação, não consigo deixar de imaginar aquelas pessoas, vítimas da imaginação colectiva que sacrifica jovens, queima heréticos e assassina multidões ao fogo mental de deuses, utopias e purezas imaginárias. Ninguém, sozinho, conseguiria imaginar razões para sacrificar outros seres humanos em cerimónias públicas. Mas, diga-se, também ninguém, sozinho, conseguiria inventar uma maneira de descobrir a substância das estrelas; ninguém, sozinho, conseguiria descobrir os átomos e as suas variações; ninguém, sozinho, sobreviveria muito tempo — e para que serviria tudo isto se não pudéssemos conversar, entre amigos, numa noite estrelada?


Marco Neves | Escreve sobre línguas e outras viagens no blogue Certas Palavras. É autor de vários ensaios sobre a língua e ainda do romance de aventuras A Baleia que Engoliu Um Espanhol.

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