Portugal e o Futuro augura antecipação. Tapássemos o autor, no que pensaríamos? Talvez na Metrópole do futuro, organizada, segura e limpa. Quando reparamos em António Spínola por baixo do título a ideia provavelmente passa para outras paragens, atendendo à bibliografia que já nos disponibilizara e àquilo em que se destacara. E passa, passa da autobahn e das cidades à medida de quem as vive para a Pátria Ultramarina, multicultural, multitribal e multicolor. Sem equívocos.
Quando Spínola nasceu, no ano em que nos nasceu também a República, vir da sua Raia natal para Lisboa era jornada para custos grandes de tempo e dinheiro. A autobahn e a técnica eram ainda incipientes, sobretudo no país acabado de sair da monarquia multissecular. O menino que viria a ser general, marechal e presidente veio para Lisboa frequentar o Colégio Militar, à Luz. Nunca renegou as suas origens nem a sua Estremoz, tendo, durante toda a sua vida, celebrado com denodo a cidade e o papel da Raia nas lutas essenciais pelas margens terrestres do Reino.
Cresceu, fez-se homem e militar de craveira, governou na Guiné e viu as tropas de Hitler, de quem chegou a ser admirador, e as suas estratégias de muito perto num palco muito longínquo: São Petersburgo. Mas a Pátria e o seu sonho ultramarino foram sempre o mote da sua vida, e a sua Magnum Opus teria obrigatoriamente que examinar o tema.
Dois meses antes do 25 de Abril Spínola apresenta-nos o texto Portugal e o Futuro, estimulando a imaginação de quem lê, concentrando as aspirações do povo e organizando-o para a desinibição dos seus protestos. Contudo, a sua leitura apresenta-nos algumas reviravoltas inesperadas, talvez devidas ao fervor ultramarino do autor.
Muitas vezes a literatura de divulgação ou didáctica é tida como inferior – o autor assume que conhece o assunto melhor que o leitor. A sua tarefa é então transmitir esta assumpção sem dissimulações, mas igualmente sem sobranceria e de forma convidativa. Se for pouco coloquial, melhor ainda. A mensagem da divulgação não pode ser ambígua, sob risco de comprometer o seu objectivo. Se não pode ser ambígua, terá que ser quase desprovida de poder metafórico.
Apesar de tudo, há textos didácticos de elevado valor literário, e o de Spínola é um destes casos. Ganha aqui, também por ser pouco coloquial, mas perde na coerência. Ou talvez as ideias apenas nos pareçam estranhas por as sabermos já pensadas. Os acontecimentos passados continuam em movimento, não ficando circunscritos à sua época, mas o general, em algumas zonas do seu manuscrito, parece tê-lo olvidado.
O mote inicial é quase distópico e revela-nos um pessimismo secular revisitado vezes sem conta. De vez em quando assomam considerações semelhantes, qualquer que seja a época. Todos lemos e iremos continuar a ler desabafos semelhantes de toda a sorte de pensadores. Cada cabeça e cada época tem a sua forma de se sentir trágica.
«Portugal vive hoje, sem dúvida, uma das horas mais graves, senão a mais grave, da sua História, pois nunca as perspectivas se apresentaram tão nebulosas como as que se deparam à geração actual” E não se julga necessário fundamentar esta afirmação em análise histórica mais detalhada do que aquela que nestas páginas apresentamos […]» (página 19, primeira após o “Intróito”).
Já o lemos várias vezes, antes e depois de 1974, em linhas nacionais e estrangeiras.
Com Portugal a grande distância, a CEE da autobahn perfilava-se, preparando-se para mil audácias, e havia que estimular a metrópole. A emigração maciça aterrorizava e a lusa Paris chegava a rivalizar com o Porto em número de residentes portugueses. O país parecia perdido e Spínola augurava que «sem os territórios africanos, o País ficará reduzido a um canto sem expressão numa Europa que se agiganta, e sem trunfos potenciais para jogar em favor do seu valimento no concerto das Nações, acabando por ter uma existência meramente formal num quadro político em que a sua real independência ficará de todo comprometida» (página 234).
«[…] A essência da Nação – isto é, o conjunto de vivências e tradições culturais correspondentes a uma forma de agir e de reagir num quadro ético-social tacitamente conformado, a solidariedade colectiva proporcionada pela solidariedade social e os traços de ligação humana entre nacionais […]» (página 20).
A sua ideia de nação parece entrar em contramão na sua autobahn nas primeiras páginas de Portugal e o Futuro. Arauto da pátria-una, advogava a ideia ultramarina de vários povos com direito à auto-determinação: a citação de cima parece pouco ajustada ao fluxo do autor.
«[…] Não tenhamos ilusões: é um facto que os africanos querem ser portugueses – mas querem-no ser à maneira africana, não à maneira como o pretende certo sector metropolitano. Impõe-se assim […]» (página 128).
Nova falta de concordância e novo tropeção na leitura. Páginas tantas parece haver uma saturação de ideias contraditórias e que o autor obedeceu a um fluxo de pensamento, remetendo-nos, e remetendo-se, para os primórdios da tradição ensaística. Contudo, talvez devesse ter partido de um ponto de vista topograficamente planificado – assim parece abrir continuamente brechas no que já tinha construído.
Portugal e o Futuro foi um livro seminal. A edição vendeu-se na totalidade e o livro pode ter dado um empurrão nada despiciendo à nossa revolução. O Estado Novo não caiu por causa do Ultramar nem de Spínola, mas o Ultramar sempre fez parte da hierarquia moral da ditadura. Críticas à política ultramarina eram críticas ao regime, e o general sabia-o.
Spínola pode ter-se deixado enredar nas suas próprias asserções, mas não é possível mensurar o que representaria a ausência desta publicação no nosso panorama político e cultural. Hoje em dia, autor e obra figuram do lado dos opositores ao regime, pelo que ambos passaram a ser de todos nós.
Muito a propósito, saiu neste mês uma publicação de João Céu e Silva sobre Spínola - O General que Começou o 25 de Abril Dois Meses antes dos Capitães". Aos 50 anos de Portugal e o Futuro, e em vésperas de eleições, temos os olhos fixos no ecrã móvel. Talvez as releituras do futuro do passado venham mesmo a calhar.
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