Neste Dia Mundial da Bicicleta, não vamos falar de bicicletas. Vamos falar de algo maior: de cidades do futuro. As cidades que conhecemos hoje vão mudar substancialmente. Mas será que veremos os carros voadores e edifícios com formas invulgares como nos habituámos a ver em séries, filmes e até apresentações comerciais de start-ups trendy? O mais provável é que não, e que a mudança não seja tão espectacular e ficcional, mas antes uma transição iterativa do actual paradigma, centrado no automóvel, para um modelo de desenvolvimento centrado nas pessoas. Desejavelmente, as cidades do futuro terão a ver de certeza a ver com um ambiente urbano mais humano e inclusivo, onde as pessoas possam estar e circular em segurança, sem se sentirem condicionadas por um modo de transporte.

O congestionamento que ocorre sempre às mesmas horas, todos os dias, nas mesmas ruas e avenidas; os níveis de poluição atmosférica muitas vezes acima valores aceitáveis e que levam ao aumento de casos de doenças respiratórias; e o ruído constante que tantas vezes torna desconfortável a vivência da cidade, principalmente ao ar livre, são alguns dos problemas que resultam de um desenvolvimento urbano que cedeu a uma indústria como o objectivo de se tornar uma das maiores e mais lucrativas a nível mundial – um dos grandes motores do capitalismo. Assim, perante a falência dos projectos de aumento da qualidade de vida e a incidência das crises torna-se cada vez mais claro que a forma como as cidades foram desenhadas até aqui está a atingir um ponto de saturação. Na verdade, o actual modelo de desenvolvimento urbano tem-se mostrado insustentável do ponto de vista social, ambiental e económico. 

As cidades desenhadas primordialmente para carros são cidades inóspitas e inseguras. A infraestrutura automóvel não favorece o usufruto do espaço público porque geralmente domina esse espaço, secando como um eucalipto as hipóteses de vida urbana em seu redor. Cidades carregadas de vias rápidas, de túneis, passeios estreitos e desconfortáveis, e onde há um convite aberto à velocidade e à aceleração, mesmo dentro dos bairros, são perigosas para quem tenta deslocar-se fora de um carro, ou para quem queira brincar ou estar na rua. Promovem inevitavelmente a utilização do automóvel e convidam até os que preferem deslocar-se de outra forma a ceder ao carro.

As vias rápidas e os túneis que em tempos foram em tempos construídos para facilitar as deslocações quotidianas, numa visão de mobilidade individualista e unimodal, têm-se revelado estruturas dispendiosas de manter por parte dos governos centrais e locais, contribuindo para o endividamento público e resultando em facturas que só ao fim de várias gerações ficam finalmente pagas. Essas mesmas vias rápidas e túneis, que em alguns locais serviram para desbastar determinados bairros – como comunidades segregadas que não tinham voz para protestar e reclamar os seus direitos –, tornaram o carro algo imprescindível para inúmeras famílias por todo o mundo – passámos a ser dependentes do automóvel porque o desenho da cidades assim o determinou.

Nas cidades do futuro, o automóvel não é o centro das atenções – apesar de continuar a ter, claro, o seu papel na mobilidade urbana. As cidades do futuro dão, em primeiro lugar, espaço e conforto ao andar a pé, ao transporte público e à bicicleta; tratam estas formas de mobilidade com a dignidade que merecem, ao mesmo tempo que apostam numa filosofia de proximidade. Nestas cidades do futuro, as distâncias entre a casa, os locais de trabalho, as instituições de ensino, os serviços do dia-a-dia e as infraestruturas culturais são curtas – não superiores a 15 minutos a pé ou de bicicleta, ou a 30 minutos de transportes públicos. Os bairros são espaços dinâmicos e multifuncionais, onde conseguimos suprir todas as nossas necessidades e, por isso, não precisamos do carro. São zonas seguras, onde se pode estar, brincar na rua ou conviver com a vizinhança. Ao pé de casa temos cafés, supermercados, espaços de convívio e outros serviços que preenchem as nossas necessidades e caprichos quotidianos. Há espaços verdes onde se pode passear e levar o nosso animal de estimação. Há praças e pracetas onde encontramos pequenas feiras e onde se promovem outras actividades lúdicas. Há hortas comunitárias onde podemos plantar as nossas frutas e legumes e partilhá-los com o nosso bairro.

Nas cidades do futuro, somos livres para sair de casa e optar pela bicicleta como meio de transporte porque vamos encontrar ruas calmas e seguras, e ciclovias nas principais avenidas para deslocações utilitárias ou recreativas entre bairros. O transporte público tem prioridade nas ruas em relação ao transporte individual e existem ruas só com transporte público, é complementado com a bicicleta e o andar a pé, e é utilizado por todos os tipos de pessoas, deixando de ser sinónimo de um estatuto social. Nas cidades do futuro, o bem estar, a saúde mental, a ansiedade e o conforto de todas as pessoas – independentemente do seu género ou condição física – são questões centrais no desenho urbano. As cidades do futuro resolvem os problemas que tanto martirizaram as cidades do passado, como o congestionamento que nos faz perder tempo e dinheiro ou a poluição que provoca doenças respiratórias.

Falamos essencialmente de mobilidade e de espaço público porque a forma como nos movemos e como estamos na cidade determina a forma como nos relacionamos com o espaço e uns com os outros. Ao humanizar a mobilidade e ao tornar o espaço público mais inclusivo, estamos a privilegiar as relações humanas e a potenciar encontros entre pessoas. As cidades do futuro são mais que palcos de materialização de grandes dinâmicas do capitalismo, são mais que mega fábricas de produtividade e consumo. As cidades do futuro são espaços de encontro, de convívio; promovem relações humanas que permitem libertar todo o potencial criativo e de inovação que se gera ao concentrar numa área relativamente pequena muitas pessoas e pessoas de diferentes locais e culturas. Só tirando as pessoas dos carros, esse símbolo do individualismo, e trazê-las para a rua é possível promover estes contactos, promovendo comunidades e relações.

O futuro não é assim tão distante e cabe aos decisores políticos, e aos habitantes de cada cidade, definir o tempo que a transição urbana durará. Se de alguns locais nos chegam vislumbres de cidades mais humanas e inclusivas, de cidades para pessoas, noutros pontos do mapa parece haver uma maior resistência a essa mudança. Como todas as mudanças, esta vai ser muito difícil de se implementar porque mexe com hábitos, costumes e preconceitos, acarreta desafios tecnológicos, de engenharia, de foro financeiro (a mudança é dispendiosa) e ao nível da infraestrutura. Também por isso, é fundamental uma comunicação boa e clara que chegue às pessoas e que as envolva nas decisões. Uma política que não seja pensada só por políticos mas que seja baseada na participação das populações; que não seja meramente impositiva, mas a que não falte ambição e visão. As cidades do futuro podem ser as cidades de hoje. Já o são em muitos países, por cá estamos à distância da mudança de mentalidades do futuro.

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Este texto foi originalmente publicado no Lisboa Para Pessoas, um órgão de comunicação local, jornalístico e diferente sobre Lisboa.

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