O miolo das palavras

Se formos aos dicionários, vemos que a palavra portuguesa «emoção» vem do francês — e tem previsível origem latina (onde também foi criada com materiais mais antigos). Esta é a história oficial, bem-comportada, previsível: há tantas e tantas palavras que nos foram dadas pelo francês...

Para lá da forma da palavra, temos também o seu miolo, o seu significado. Para percebermos a origem da nossa palavra, tal como a usamos hoje, temos de olhar não só para o latim e para o francês, mas também para umas ilhas mais a norte... Temos de viajar até à Inglaterra do tempo de Shakespeare.

Os inventores de palavras

Por esses dias, vivia por lá um famosíssimo tradutor: John Florio.

Florio teve uma vida animada e deixou uma obra que ficou na história. Criou um dicionário de italiano-inglês com o título A Worlde of Wordes e traduziu os Ensaios de Montaigne. Esta tradução é considerada por muitos como uma obra importantíssima na história da literatura inglesa — terá mesmo influenciado Shakespeare, que usou muitas expressões da tradução de Florio.

Shakespeare era um conhecido inventor de palavras. Esquecemo-nos que, ao lado dos escritores, também houve tradutores que inventaram palavras. Florio foi um dos casos mais conhecidos. Algumas das palavras que inventou — ou importou — são conhecidas. Foi dos primeiros a usar «its». Foi quem deu lugar na sua língua a palavras como «regret» — e, por fim, «emotion».

A história da emoção

«Emotion», uma vez importada, sofreu bastante nas mãos dos ingleses.

No momento em que foi importada, significava, tal como em francês, algum tipo de perturbação ou movimento corporal. Ao longo do século XVIII, começou a ficar associada também ao que se passava na mente quando havia esse tipo de perturbação ou movimento corporal. No século XIX, principalmente a partir do trabalho de Thomas Brown, filósofo escocês, passou a designar uma categoria teórica na ciência da mente (esta pequena história da palavra baseia-se no artigo de Thomas Dixon citado abaixo).

Ora, estas transformações no inglês acabaram por influenciar a maneira como a palavra (nos seus vários disfarces) é usada noutras línguas europeias. A palavra francesa, a palavra castelhana, a palavra portuguesa (entre muitas outras) parecem ter convergido num significado comum nas discussões entre cientistas — passando depois esse significado para o uso menos técnico. Esta convergência não acontece frequentemente com palavras do dia-a-dia, mas é relativamente comum em palavras técnicas e científicas.

António Damásio, nas últimas décadas, tem mostrado como as emoções são representações mentais de estados físicos. A história da palavra está aí a lembrar isso mesmo.

A língua aos saltos

A importação de Florio acabou por mudar não só o inglês, mas também o francês, de onde a palavra tinha vindo, e muitas outras línguas — incluindo o português. A nossa palavra «emoção», que veio do francês, adquiriu um miolo cozido no inglês. (O miolo das palavras, em geral, muda bem mais depressa que a sua forma. A mesma palavra pode servir para tanta coisa que os dicionários têm dificuldade em acompanhar os falantes...)

Hoje em dia, as línguas estão muito mais padronizadas do que no tempo de Florio e é mais raro que um tradutor invente uma palavra. Imagino que Shakespeare — ou Camões! —, se aparecesse nos nossos dias, hesitaria em inventar tantas palavras, com algum medo da gritaria nas redes sociais («onde já se viu inventar palavras?!»). Enfim, hesitaria — mas só por uns segundos. Os grandes escritores gostam de brincar com palavras, mesmo que tal implique muita mistura, experiências falhadas e gente aos gritos. As nossas línguas não perdem nada com isso.

Já agora, a história de John Florio — e de muitos outros tradutores pelo mundo fora — aparece num apetitoso livro de Anna Aslanyan com o título Dancing on Ropes: Translators and the Balance of History  — que está mesmo a pedir uma tradução para português...

Referência:

Dixon T. "Emotion": The History of a Keyword in Crisis. Emot Rev. 2012 Oct;4(4):338-344. doi: 10.1177/1754073912445814. PMID: 23459790; PMCID: PMC3573683.

 

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas PalavrasO seu livro mais recente é Português de A a Z.