Outros retratos desse tempo: Jane Birkin, com olhos incrivelmente azuis e silhueta incrivelmente perfeita na capa da revista Lui, ícone do erotismo, e o Le Monde a bater o recorde de vendas, com mais de um milhão de exemplares, na edição de 11 de maio de 1981, com o anúncio da eleição de François Mitterrand e o novo presidente a prometer “o renascimento da França”. Era uma época em que a France-Inter e a Europe nº1 inspiravam alguma da rádio que mudava a rádio em Portugal.

A presidência Mitterrand, por 14 anos, começou por entre entusiasmos e ilusões, que depois caíram, até que entrou o mal-estar que agora chega a dar fúrias. Desapareceram as inspirações. A França deixou perder muito do apelo. Juliette Binoche é uma das últimas estrelas francesas nesse tempo de fronteira. Gilles Lipovetski explica esta era do vazio, também da ligeireza. O controverso Michel Houellebecq contribui para enquadrar a ideia de uma França submetida.

O fracasso da integração social em França de tantos imigrantes oriundos de regiões a sul do Mediterrâneo, e das suas gerações seguintes já nascidas em França, é um acelerador do mal-estar no país sobressaltado ao começar a sentir estar a perder, uma após outra, as antigas proteções. Na França que antes se orgulhava de ser terra de asilo, a identidade nacional passou a ser discutida tendo em fundo o fantasma de ficar dissolvida nas culturas dos que chegam de fora.

O emprego deixou de estar seguro na economia estagnada. Os apoios do sistema de bem-estar social começaram a sofrer cortes sucessivos. O poder de compra recuou. A intempérie disparou sobretudo nas classes mais populares, mais expostas. A insegurança instalou-se. Começou por ser económica, cresceu com a globalização e a crise financeira de 2008, disparou com a ameaça terrorista à porta de casa. O sistema político revelava sintomas de esclerose grave.

A Frente Nacional dos Le Pen, primeiro o pai, agora a filha, Marine, com 48 anos, e já também a neta, foi hábil a detetar e a capitalizar o mal-estar. Deu em 2002 um primeiro abanão no sistema político quando nessa eleição presidencial Jean Marie Le Pen (17,7%) superou o socialista Jospin (16,1%) e o afastou da finalíssima com Chirac, candidato da direita clássica. Então, o sobressalto republicano levou a que Jacques Chirac passasse de 19,8% na atomizada primeira volta para retumbantes 82,2% na decisão final.

O mal-estar voltou a rebentar nos votos quando, na eleição de 2012, coisa até então rara, um presidente em exercício, no caso Sarkozy, falhou a reeleição, sendo batido pelo pretendente socialista, Hollande. Mas, em cinco anos, apesar de alguns gestos com grandeza mas muitos ziguezagues e derrapagens na economia, Hollande não conseguiu encontrar-se com os franceses, tanto que renunciou à recandidatura para as eleições de agora.

Assim chegamos ao arranque para a eleição deste 2017.

No ano passado, um cavalheiro parecia lançado para conseguir confortável eleição: o moderado e experiente Alain Juppé, figura respeitada do centro-direita, sem hostilidades e até simpatias no centro-esquerda. Em novembro, aconteceu a primeira surpresa desta eleição: os eleitores da direita francesa, em eleições primárias, preferiram o catecismo católico e ultraliberal de um discreto ex-primeiro-ministro de Sarkozy, François Fillon. Com a esquerda estilhaçada e sem mostrar alternativas, Fillon parecia ter o tapete vermelho ao dispor para o levar à presidência. O cenário no começo deste ano era o de finalíssima da eleição entre François Fillon e Marine Le Pen, com Fillon a ganhar com relativa facilidade.

Tudo mudou a meio de janeiro, quando o semanário Canard Enchaîné revelou que Fillon, 63 anos, tinha desviado fundos públicos para trabalhos fictícios da mulher. Na França farta de histórias de corrupção, Fillon entrou em imediato declive. Passou a aparecer como caricatura dos vícios dos políticos, ele tentou contornar as acusações, mas as sondagens mostraram de modo contínuo que Fillon tinha caído do topo.

Foi a oportunidade para o jovem Emmanuel Macron, que entra pelo centro, a piscar o olho à esquerda e à direita: tinha sido ministro da Economia no governo socialista de Hollande, demitiu-se por discordar da linha política, criou um movimento, En Marche, que apresentou como alternativa perante a crise de representação dos partidos tradicionais. Macron, com 39 anos, junta a formação financeira com vasta cultura literária (sempre um valor em França), irrompeu na paisagem política como uma personagem inovadora, dinâmica, inteligente, sagaz e séria. Embora talvez demasiado tecnocrático.

Macron apareceu pujante, como o mais europeísta dos candidatos. Ganhou apoios na área socialista (o PS escolhera, entretanto, um candidato, o ecologista Hamon, 49 anos, fértil em ideias mas sem conseguir convencer) e também na direita moderada que já não estava entusiasmada com Fillon. Em poucas semanas cavalgou, de modo fulgurante para à volta dos 24% das intenções de voto, tanto quanto Le Pen e uns cinco pontos percentuais à frente de Fillon, sendo que Macron se impõe a Le Pen em todas as sondagens sobre a segunda volta.

Há um mês, estava assim instalada nova reviravolta nesta eleição presidencial francesa: Macron passava a aparecer como o favorito para ser eleito como próximo presidente da França.  Mas, entretanto, irrompeu uma outra surpresa, Jean-Luc Mélenchon, com 65 anos. É, sob o lema “França insubmissa”, o candidato que afaga a esquerda mais à esquerda. Mélenchon tem um programa substancial de rompimento com o modelo de economia liberal dominante na Europa, propõe a invenção de um novo modelo conforme ao humanismo ecológico e social. Toma a palavra, orador envolvente, é reconhecido como o melhor dos tribunos em comícios em que usa sofisticados recursos 3D que lhe permitem aparecer simultaneamente em palcos separados por centenas de quilómetros. É o anti Le Pen, capta, tal como ela, os votos de tantos insatisfeitos, muitos deles jovens. Mélenchon surpreendeu ao crescer rapidamente até à beira dos 20%.

A campanha tem discutido questões interessantes, que vão do futuro do trabalho à ecologia na vida quotidiana.

Neste momento, em vésperas da primeira volta que, no domingo, vai apurar os dois finalistas, o palco está virado para as surpresas. Tudo ainda pode acontecer no sprint final desta eleição em que pela primeira vez, o confronto não é tanto entre esquerdas e direitas mas, sobretudo, entre nacionalistas e globalistas.

Há para a decisão uma mulher, Le Pen, e três homens, Macron, Mélenchon e Fillon. Apenas duas candidaturas vão disputar a decisão da eleição em 7 de maio. Sobre a mesa estão seis combinações possíveis. A mais provável, remete para a final entre Le Pen e Macron, com altíssima probabilidade de eleição do centrista Macron. Há a possibilidade de Macron sofrer o efeito do crescimento de Mélenchon e de isso puxar Fillon para a final com Le Pen. Mas até pode acontecer, embora pareça improvável, que a decisão venha a ser entre Le Pen e Mélenchon. A maior incerteza passa pelos cerca de 12 milhões de eleitores tão descrentes que ainda não decidiram como votar. Nota-se muito nervosismo entre todas as quatro principais candidaturas e o resultado, qualquer que seja, terá alguma dose de surpresa. Mesmo que se confirme o favoritismo de Macron, quem diria há seis meses que este jovem político de cultura filosófica estaria agora à beira de liderar uma potência europeia.

O que parece certo é que estas eleições francesas serão genuína expressão do descontentamento espalhado pela Europa, com os partidos clássicos em estado de alarme. É bem provável que a seguir venha a recomposição política da França.

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