Pensemos na nossa língua. Quando nasceu? Se usarmos o critério do nome da língua ou mesmo da permanência no mesmo território, teremos de considerar que o português só nasce quando alguém lhe dá o nome de português. No entanto, quando tal aconteceu já a nossa língua, com características reconhecíveis, era falada havia muitos séculos.

Se acharmos que uma língua nasce no momento em que se separa de outra, poderemos então dizer que o português nasceu quando se separou do galego. Mas quando foi isso? Já aconteceu? As línguas são como aquelas bactérias que se multiplicam através da divisão: surgem novas bactérias, é certo, mas nenhuma é mais antiga do que a outra – nenhuma é mãe da outra. As línguas são um bicho estranho.

Alguém dirá: ora, a língua nasce quando nascem os primeiros documentos escritos. É um critério apetitoso – é concreto, é físico, podemos comprovar a data. Mas, se assim for, a maioria das línguas humanas nunca chegou a nascer.

No fundo, o ponto em que começamos a contar a História de uma língua é sempre uma escolha, tem sempre muito de arbitrário.

Tudo isto pode ser assim, mas o que importa a muitos é a norma associada à língua escrita – e formal, já agora –, ou seja, o registo particular baseado na fala de determinada zona ou grupo social, normalmente o grupo de prestígio que habita nas cidades mais importantes de cada sociedade. Por outras palavras, quando perguntamos a idade duma língua, estamos a perguntar a idade da tradição escrita e literária dessa língua. 

Mas mesmo por aí temos dificuldades: o primeiro texto português terá sido o primeiro texto com vestígios da língua falada por estes lados, ou terá sido o primeiro texto que parece escrito integralmente em romance, embora com muitas palavras ainda na forma latina? Há, também aqui, uma gradação… Diga-se, no entanto, que todos esses textos não inventam a língua: a língua é primeiro falada e só depois escrita. Parece estranho considerá-los como certificados de nascimento. Os primeiros documentos oficiais também não serão o melhor critério: poderá ter havido outros, desaparecidos, e − mais uma vez − a língua já era falada. 

A linguagem humana e a sua variabilidade serão como o barro, sempre moldável e sempre a caminho de ser outra coisa. De vez em quando, há quem pegue num pedaço desse barro e coza uma língua-padrão – mas, na rua, as pessoas continuam a brincar com o mesmo material, mudando a forma da língua até a forma rígida da norma se partir e ter de ser substituída por outra. 

A norma não pode inventar uma língua do nada – tem de usar os materiais que existem. A norma é uma força que actua sobre esses materiais, por vezes como política consciente, com mais ou menos êxito, outras vezes através de mecanismos inconscientes de aproximação à fala do grupo de prestígio. 

Voltemos à nossa pergunta: quando nasceu o português? Uma das respostas possíveis é dizer que as línguas não têm idade. As línguas mudam, passam por fases, vão-se sujeitando a diferentes normas, misturam-se e influenciam-se umas às outras. Neste percurso complexo, damos-lhes nomes e assumimo-los como bandeiras das nossas identidades. É normal que queiramos saber quando nasceram as tais bandeiras, mas a resposta nunca poderá ser simples. Todas as línguas foram criadas ao longo dos séculos, a partir de materiais anteriores, num processo que começou há muitos milénios – e não acabou.

O português não nasceu — vai nascendo.

(Baseado em capítulo do livro História do Português desde o Big Bang.)

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras e publica um episódio diário no canal Pilha de Livros