Foi o que pensou a mãe do J. quando, passado umas semanas de ver confirmado o diagnóstico de cancro do seu filho com apenas 7 anos, ouve falar em “pandemia”. Umas semanas antes, ficou a saber que o cansaço e as dores ao final do dia tinham uma causa quase indizível: cancro. Que teria de ser tratado em Lisboa e que, a partir daí, seria um dia de cada vez. Viu-se obrigada a deixar na Madeira o pai e os avós a cuidar dos outros três irmãos. Todos pequenos, o mais velho com 10 e os outros mais novos do que o J. Com o início do tratamento, andar na rua podia ser uma aventura, tinha de fugir dos sítios com mais gente, um espirro um prenúncio de ansiedade.
A preocupação em pagar uma casa para ficar durante o tempo necessário ao tratamento - meses, pelo menos - foi a que se resolveu de forma mais célere: os serviços sociais do IPO Lisboa, encaminharam a família para a Casa Acreditar de Lisboa. Onde está hoje a olhar pelas janelas da entrada da Casa, para uma rua vazia, para um hospital que todos os dias traz tanta e tanta vida àquela parte da cidade. Leram bem: vida.
Hoje, tem a seu lado as dezenas de sapatos alinhados de todos os tamanhos - grandes, pequenos e muito pequenos - daqueles que estão na Casa, como ela, a cuidar dos filhos que estão em tratamento. Dali para dentro, o que se quer é que seja território seguro, o mais seguro possível, anda tudo de chinelos de quarto descartáveis. É uma casa, não é a sua, mas agora é a sua. E o medo que lhe entrou pela vida há uns meses, agora é sentido por todos nós.
As várias famílias que estão nesta Casa organizam-se assim: horários diferentes para utilização da cozinha; horários diferentes para utilização das zonas comuns; saídas, só para os tratamentos no IPO, ou para compras urgentes; não há visitas de familiares e o voluntariado foi interrompido dentro da casa. Há o número mínimo de colaboradas para garantir o bom funcionamento da Casa. Desinfectante obrigatório sempre que se entra em casa, máscaras e luvas sempre disponíveis. E todos deixam à porta os seus sapatos da rua.
As outras Casas da Acreditar, em Coimbra e Porto, também têm os planos de higiene e contingência em prática. A protecção higiénica é tão importante como o é o sentimento de que se está a fazer tudo para se estar seguro.
Eu explico:
Há materiais que faltam, os chamados EPI - equipamentos de protecção individual - que estas famílias conhecem desde sempre, porque sempre os utilizaram. As crianças com doença oncológica são um grupo de alto risco para qualquer infecção comum, têm organismos imunodeprimidos, o que quer dizer que têm as suas defesas muito em baixo, consequência dos tratamentos químicos que fazem. Sabem bem o que é andar com o coração na boca só de respirar o mesmo ar daqueles que estão perto. São materiais do dia-a-dia destas famílias, como levar a carteira quando se sai de casa. Só que agora podem acabar, podem não chegar para o tempo que não sabemos contar, como eles desde que foram diagnosticados.
A Acreditar está a fazer todos os esforços, com diversas entidades públicas e particulares, para adquirir quantidades que sirvam as necessidades para o maior tempo possível. Os pais precisam de saber que, sempre que precisarem, os materiais estão lá.
A vida, como sabem, não pára. Também continuam a precisar as famílias com mais dificuldades que recebem os apoios económicos da Acreditar. A ligação aos hospitais é permanente, há famílias que têm diagnósticos de cancro pediátrico mesmo nestes dias.
Os encontros entre os jovens sobreviventes acontecem, agora virtualmente. O trabalho de advocacia social continua a ser feito. O apoio jurídico também.
Tivemos de suspender o apoio emocional nos hospitais, o apoio escolar, as sessões de esclarecimentos nas escolas, nas empresas. O voluntariado nas Casas e, claro, nos hospitais.
Continuamos a trabalhar. Agora mais do que nunca é fundamental não esquecer todos os que mais precisam. Todos: outras associações de doentes, grupos mais vulneráveis, todos. São sectores em que, quando há crise e os recursos são curtos, são habitualmente esquecidos.
Há famílias que não sabem se vão ter emprego quando a vida voltar ao normal, não sabem se conseguirão pagar despesas, não sabem se poderão ter os seus filhos a estudar com todas as condições necessárias, só para dar alguns exemplos. Em boa verdade, ninguém sabe muito bem como vai ser o mundo pós emergência. Na Acreditar sabemos que, aconteça o que acontecer, vamos continuar a estar ao lado destas famílias.
Na Acreditar, pais e crianças estão aqui. Muitos vivem aqui, vão continuar a viver aqui um período de emergência das suas vidas.
Temos assistido a movimentos solidários só possíveis em alturas como esta. É emocionante perceber que estamos todos preocupados em apoiar os que estão na linha da frente; os que são mais vulneráveis; os que não têm rede. As associações têm aqui um papel crucial.
Não há alturas melhores ou piores para apoiar quem precisa. Sabemos é que pessoas vulneráveis ficam ainda mais vulneráveis em situações de crise. É por isso crucial garantir as condições de funcionamento das associações.
O que a Acreditar faz há 25 anos - minimizar o impacto da doença oncológica na criança e na sua família, é ainda mais premente agora.
Neste momento, tão excepcional, que vivemos, é decisivo que tenhamos consciência plena de que todos podemos ser solidários através de sólidos mecanismos contratuais entre os cidadãos e as associações. Exemplo disso é a consignação do IRS, 0,5% é directamente entregue à entidade seleccionada, sem custos ou perda de benefícios para quem o fizer. Para a Acreditar esta iniciativa tem representado cerca de 25% da receita anual o que se reflecte em vários apoios prestados.
A vida que todos os dias vemos nesta zona da cidade está mais contida, menos pública, mais invisível. Mas está aqui. E quando passar este momento mais longo e já pudermos respirar sem medo, possivelmente as mães de J.’s vão continuar a olhar para isto pensando que a vida traz muitas surpresas mas que se supera uma de cada vez. Com uma força que se vai buscar a um lado qualquer, porventura desconhecida até esse momento.
Sobre a Acreditar:
A Acreditar, Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro existe desde 1994. Presente em quatro núcleos regionais: Lisboa, Coimbra, Porto e Funchal, dá apoio em todos os ciclos da doença e desdobra-se nos planos emocional; social e jurídico. Em cada necessidade sentida, dá voz na defesa dos direitos das crianças e jovens com cancro e suas famílias. Com a experiência de quem passou pelo mesmo, enfrenta com profissionalismo os desafios que o cancro infantil impõe a toda a família.
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