O que não faltam são períodos da História em que todo um povo é julgado pela acção dos seus dirigentes. Nós, portugueses, somos um bom exemplo; a grande maioria era contra a guerra colonial, imposta por Salazar como uma “missão sagrada”, mas éramos vistos como colonialistas pela opinião pública mundial. Certamente que nem todos os alemães eram nazis e sabiam o que se passava nos campos de concentração. Os norte-americanos, num regime que permite a constestação, manifestavam-se continuamente contra a guerra do Vietname, embora mesmo os seus aliados os considerassem imperialistas. Mesmo submetidos a uma propaganda avassaladora, não é certo que os russos concordem com a invasão da Ucrânia, mas os que vivem no estrangeiro são ostracizados.
Talvez o falso lugar-comum mais difundido seja que os muçulmanos são terroristas. Há cerca de mil e oitocentos milhões de seguidores do profeta Maomé; que percentagem será radical? Cem mil, um milhão, dez milhões? Sejam quantos forem, constituem uma minoria. Podemos (nós, ocidentais) não tolerar os seus comportamentos familiares, mas isso não faz deles perigosos ou uma ameaça para a paz mundial.
Os judeus também têm sido vítimas, historicamente, de incontáveis preconceitos e perseguidos pelas razões mais díspares, embora a maioria sejam bons pais (ou mães) de família e não se dediquem à agiotagem.
Estas considerações vêem a propósito do que se está a passar no conflito Israel/Hamas, que tem suscitado agitação no mundo inteiro. Acontecem diariamente manifestações pró-palestinianas e pró-israelitas, por vezes com confrontos violentos - isto em países que nem sequer estão directamente envolvidos no conflito. O anti-semitismo e o anti-islamismo estão em alta, gerando situações agrestes e até mesmo caricatas - estou a referir-me ao diferendo entre a polícia londrina e o governo inglês quanto a permitir uma manifestação a favor do cessar-fogo em Gaza. O governo britânico quer proibir, as autoridades policiais não veem nenhum problema.
Em geral, toda a gente concorda que os palestinianos não se reveem na política do Hamas, até porque são eles as maiores vítimas. Mas, também em geral, comenta-se sobre os israelitas como se estivessem todos de acordo com o massacre dos palestinianos e a política que o seu país tem conduzido nas últimas décadas - concretamente, desde 1996, quando Netanyahu foi eleito pela primeira vez.
Ora, acontece que Israel é uma democracia com 12 partidos que vão da extrema-direita teocrática - Likud - à social-democracia secular. Há até um partido teocrático fascista - Otzma Yehudit - a favor da eliminação física dos palestinianos. (É interessante lembrar que o país começou como um projecto de esquerda, com cooperativas iqualitárias, os famosos kibutz.)
A eleição do Likud seguiu-se ao assassinato de itzhak Rabin pela extrema-direita, exactamente porque Rabin defendia a solução dos Dois Estados consagrada no Acordo de Oslo.
Os governos israelitas são sempre coligações de vários partidos e o tom da governação é definido pelo peso das várias tendências políticas. Em Dezembro do ano passado, Netanyahu só se conseguiu eleger com uma coligação de sete partidos - Likud, United Torah Judaism, Shas, Religious Zionist Party, Otzma Yehudit, Noam e National Unity - que inclui os mais radicais. Ou seja, as tendências nacionalistas do Likud receberam o apoio dos partidos à sua direita, formando um grupo que rejeita completamente a ideia dos Dois Estados e favorece a expulsão dos muçulmanos da Cisjordânia, com a expansão dos colonatos (condenada na ONU).
Desde a formação desta coligação de “deploráveis”, aumentaram os colonatos na Cisjordânia e os colonos aumentaram a pressão sobre os palestinianos cisjordanos, com provocações e até assassinatos. Segundo o “The Economist”, uma revista conservadora (logo, pró-israelita) desde os massacres do Hamas a 7 de Outubro, os colonos, com o apoio ou indiferença das forças armadas, já mataram pelo menos 155 cisjordanos árabes. As provocações e os “incidentes” (casas queimadas, plantações destruídas) tornaram-se diários. A polícia da Autoridade Palestiniana não tem qualquer possibilidade de intervir.
Segundo a revista, os colonos de extrema-direita que compôem o governo de Netanyahu não estão interessados em acalmar a situação. Itamar Bem-Gvir, Ministro da Segurança Nacional, entregou pessoalmente dezenas de armas aos colonos, para “se protegerem”. Também têm sido construídas estradas de acesso aos colonatos, que os palestinianos não podem usar, por decisão do Ministro das Finanças, o colono ultra-nacionalista Bezalel Smotrich. Há relatos de que os cisjordamos estão prestes a revoltar-se, o que justificaria uma acção musculada das forças armadas e acabaria de vez com a Autoridade Palestiniana.
Estas são as decisões de um governo que quer acabar com os palestinianos nas suas duas áreas, Gaza e Cisjordânia, mas há muitos israelitas que não concordam com tais políticas e continuam a defender a política dos Dois Estados, cada vez mais impossível. Gideon Levy, um famoso colunista do jornal mais institucional de Israel, o Haaretz, recentemente fez um relato devastador da política de Netanyahu no Clube de Imprensa de Washington - pode vê-lo aqui, embora pareça que foi misteriosamente apagado…
Os israelitas que defendem uma aproximação com os palestinianos estão numa situação desesperada. O massacre do Hamas em 7 de Outubro deixou a população do país aterrorizada e, muito justamente, desejosa de vingança. Muitos acham que acção do Hamas foi precisamente para exacerbar os ânimos e simultaneamente eliminar a aproximação de Israel com os estados árabes, que estava em andamento, liquidar de vez a solução dos Dois Estados e dar força a Netanyahu, que precisa desesperadamente de se manter no poder para escapar aos vários processos judiciais que tem pendentes contra ele. Esses israelitas queriam ver-se livres de Netanyahu e das suas políticas, mas percebem que enquanto durar a guerra não pode haver mudança de Governo. Talvez por saber da sua impopularidade, o primeiro-ministro repete constantemente que a guerra não tem fim à vista - só acabará quando o Hamas acabar, coisa que todos sabem ser impossível.
É terrível quando temos um governo com uma política odiosa e não vemos fim à vista. Deve ser o que sentem muitos russos, também. E não consigo deixar de me lembrar da nossa situação (nós, portugueses) quando vivíamos em circunstâncias idênticas. No nosso caso aconteceu um fenómeno imprevisível - os militares afinal também não queriam a guerra. Mas foi também um caso inédito e de certo modo contra-natura.
Os governos radicais são muitas vezes eleitos democraticamente, ou resultado do equilíbrio criado pelo jogo dos partidos. É muito difícil impedir que aconteçam, porque são as regras da democracia - um regime que seria perfeito se as pessoas fossem perfeitas.
Enquanto não se descobre uma receita para esta perversão do sistema, vamos ter sempre Orbans e Venturas à espreita...
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