1. Alessandra Korap está ameaçada de morte. Quando lhe telefono, ontem à noite, parte da Amazônia arde há mais de duas semanas, mas o mundo só acordou há dias, quando São Paulo ficou às escuras do fumo, e os fogos se avistaram do espaço, de tão tamanhos. Um pedação de planeta a arder, do oxigénio de todos, humanos e não humanos.

É lá que está Alessandra, um pontinho dessa Amazônia imensa. Uma mulher indígena, do povo munduruku, de uma região a meio do Tapajós, grande rio verde-espesso que nasce no estado do Mato Grosso, vem pelo Pará e desagua no barrento Amazonas, junto a Santarém. Dos lugares mais lindos do mundo, de tudo o que vi, esse encontro das águas, essas redondezas.

E Alessandra é uma das mulheres que estão a mudar também o seu mundo ao assumir uma liderança de luta, ao falar, ao sair pelas ruas, e pelas estradas. Ela foi uma das milhares que no dia 13 protagonizaram a Marcha das Mulheres Indígenas, em Brasília, que se juntou à já tradicional Marcha das Margaridas, com 100 mil mulheres rurais.

E se Alessandra está ameaçada de morte, tal como o cacique do seu povo — vi os papéis da denúncia oficial —, é porque não dá tréguas à luta por demarcação de terra. Há 519 anos que os indígenas da Amazônia lutam pela vida, porque estão ameaçados, lembrou Alessandra numa intervenção pública em que parece um trovão a descer sobre a mesa dos engravatados. Mas nunca como em 2019 a ameaça foi tão escancarada, com licença do alto, do poder criminoso que ocupa Brasília. É o que Alessandra me conta, e o que ela diz devia ir de governo em governo, entre os que continuam a achar que têm de tratar Bolsonaro como se ele fosse mais um presidente de uma democracia. Alguns começam a perceber que não têm, nem podem. A Amazônia ajudou a soar o alarme.

2. Alessandra atende o telefone caminhando pelas ruas de Santarém, acabada de sair da faculdade. Está na cidade grande porque estuda Direito na Universidade Federal do Oeste do Pará. Embora precise “desesperadamente de uma bolsa”, diz-me o amigo comum que me deu o contacto dela. E Bolsonaro congelou as bolsas de mestrado e doutoramento, além de boa parte dos orçamentos das universidades federais, como é o caso da dela. Mas não é esse o nosso assunto hoje. A Amazônia está a arder como nunca, e a Amazônia é a casa que Alessandra conhece desde os ancestrais.

“O incêndio sempre aconteceu”, diz ela. “Todo o Verão o desmatamento é muito grande. Fazendeiros, soja, [centrais] hidroelétricas, porque com a construção das hidroeléctricas vêm muitos invasores atrás de terra, estrada. Também madeira, os madeireiros derrubando, para depois criar pasto.” Esse é o cenário há muito. “Mas nesse ano de 2019 a situação piorou mesmo. Porque as pessoas estão invadindo os territórios indígenas, estão invadindo assentamentos. Os indígenas não têm mais sossego. E esse crime que está acontecendo é a partir da fala do Presidente. Quando o Presidente diz que não vai demarcar um território [indígena], ele incentiva as pessoas a invadir as terras indígenas. Ou quando eles cortam a verba que era para o controle do desmatamento. E agora ele quer botar a culpa nas pessoas que moram aqui. Mas esqueceu que ele incentiva os madeireiros, os garimpeiros, os grileiros, a desmatar mais a Amazônia.” Os grileiros são aqueles que se apropriam de terras, nomeadamente com documentos falsos. Estão por toda a parte no Brasil, onde é comum todo o tipo de pressão, usurpação, mas cada vez mais simplesmente abate das pessoas que são obstáculo. No Pará, que é o estado de Alessandra, há lugares do interior em que a sensação é de, a todo o momento, alguém poder sacar de uma arma. A diferença agora é a licença para matar que fica implícita, ou é extraída do que Bolsonaro e o seu governo dizem e fazem.

“Ele sempre falou assim: a Amazônia tem que virar capitalismo”, diz Alessandra. “E é isso que está acontecendo, a Amazônia está morrendo por causa do capitalismo. O capitalismo da carne, o capitalismo da soja, do hidrovia, da ferrovia, das hidroeléctricas, arrendamento de terra. Então, quando o presidente fala lá em cima, o povo já está fazendo aqui em baixo.”

E fica cada vez mais difícil lutar contra. “A gente, liderança, não consegue mais andar na cidade, com medo de as pessoas matarem com bala. Porque ele [Bolsonaro] fala que tem que metralhar. E metralhar quer dizer que tem que meter a bala”. Bolsonaro usou a palavra tanto em sentido figurado, em relação ao Partido dos Trabalhadores, como no sentido literal de metralhar pessoas, em relação à Rocinha, favela do Rio de Janeiro, para acabar com o problema do tráfico. Para não falar do constante gesto de metralhar que o Presidente gosta de fazer, e de ensinar às crianças.

“Como mulher, como indígena, como mãe, digo que a gente tem de lutar, a gente tem de denunciar um Presidente desses”, resume Alessandra. “Ele diz que não precisa da Amazônia, que a Amazônia precisa de ser vendida. Mas nós estamos dentro. Indígenas, quilombolas [descendentes de escravizados], animais, água. Os animais estão pedindo socorro. Quem pode cuidar, preservar a Amazônia são os indígenas a que hoje eles estão tirando todos os direitos: do território, da educação, da saúde. Recursos, também, de projectos que a gente faz para combater. A gente está fazendo auto-demarcação com as nossas próprias mãos. E tem um Presidente dizendo que não vai demarcar terra. Um Presidente colocando a culpa nos outros, que na própria fala dele cospe ódio, só tem ódio no coração, usa o nome de Deus em vão, diz que respeita a Constituição, mas nunca respeitou. Agora quer botar culpa em ONGs, em nós, indígenas, mas a gente sempre denunciou esse invasores e nunca teve resposta. E agora são os nossos corpos que estão na frente, os nossos animais que estão morrendo, os nossos filhos pedindo socorro. E esse governo está matando cada vez mais a Amazônia, matando os povos indígenas, matando o que é a vida. A gente não sabe mais para onde pedir socorro. Mas vai continuar lutando”.

E quando pergunto a Alessandra o que pode o mundo fazer para ajudar, ela responde: “Pedir para o mundo que não compre mais carne do Brasil, que não compre mais madeira do Brasil, que não compre mais soja do Brasil, que não transporte mais nada. Porque, se comprar, também está ajudando a desmatar, também está ajudando a matar nós, indígenas. Toda a carne, toda a soja, todo o milho que é transportado do Brasil para fora tem sangue indígena, tem sangue dos quilombolas, tem sangue dos animais, tem sangue dos nossos filhos, tem sangue dos nossos antepassados”.

3. A mais de 2000 quilómetros de Alessandra, está Altair Algayer, sertanista que desde 1992 trabalha com povos indígenas. É funcionário da Funai, Fundação Nacional do Índio. Um organismo federal com altos e baixos, mas que agora enfrenta um buraco negro. Bolsonaro nomeou há um mês um novo presidente, delegado da Polícia Federal e considerado próximo dos ruralistas, a poderosa bancada parlamentar do agro-negócio.

A base de Algayer é em Rondônia, perto da fronteira com a Bolívia. Uma outra Amazônia, em contraponto à de Alessandra, um alvo de desmatamento. Como vê ele estes incêndios, com a sua experiência de quase 30 anos no terreno?

“É um crime ao meio ambiente além de gerar diversas complicações de saúde à população. Nesta época [seca, Inverno], todos os anos temos um clima favorável e sugestivo a queimadas. Soma-se a isso a imprudência e irresponsabilidade de muitas pessoas. Algumas queimadas ocorrem por desmatamentos (legais e ilegais), feitos para a formação de novas áreas agrícolas e agropecuária, na qual se perde o controle do fogo, e que atinge áreas de floresta. E outros focos criminosos são de queimas em beira de estradas, pequenas roças, lixo, que logo se tornam queimadas sem controle”. Tudo isto, diz, precisa de muito mais controlo para não se tornar uma catástrofe. Mas o que tem acontecido é o contrário. E as principais vítimas são os habitantes originais.

“A população indígena pouco pode fazer para controlar as queimas, que, muitas vezes, vêm do entorno do limite de suas reservas. Em alguns casos, quando os índios percebem o fogo nas suas reservas, já as chamas estão sem controle. São os mais prejudicados com a perda da vegetação”.