As linhas da frente estacionaram; as operações de parte a parte não são conclusivas. Invocando o falso argumento de que a Ucrânia é um país “inventado” que sempre pertenceu à russkiy mir – à letra, a “paz russa”, na verdade a versão moscovita do espaço vital eslavófilo russo – Vladimir Putin nunca imaginou que a sua blitzkrieg não triunfasse depressa, ao estilo da tomada da Crimeia, em 2014, da invasão da Geórgia, em 2008, ou do esmagamento da Chechénia, em 2000. Ao não ganhar depressa, contudo, começou a perder. Por contraste, pedindo “munições” e não “boleias”, decidindo ficar e lutar, Volodymyr Zelensky reinventou em Kyiv a Grã-Bretanha de 1940, mobilizando os ucranianos para uma cruzada de unidade, determinação e capacidade de sacrifício. E ao não perder, conseguiu estar a ganhar. No terreno, ainda não há decisão. No plano da moral política global, infelizmente também não.

A invasão de 2022 não surpreendeu os historiadores. Não era absolutamente inevitável, porque não há inevitabilidades absolutas em história. Mas a história da Rússia pós-comunista e, sobretudo, da leitura revisionista que Putin levou para o poder, em reação à década perdida de Boris Ieltsin, revelou passo a passo o caminho que desembocou em 2022. O colapso do império soviético – disse Putin – fora a maior catástrofe geoestratégica do século XX. E, como salienta Timothy Garton Ash no seu recente livro Pátrias. Uma História Pessoal da Europa, o que não aconteceu em 1991, quando, no frustrado golpe de Moscovo, os ortodoxos do PCUS tentaram eliminar Mikhail Gorbatchov, aconteceu no século XXI: o império contra-atacou. A russkiy mir dos primeiros anos do reinado do novo Czar pode ter tido roupagens liberais e internacionalistas – afinal, a Rússia entrou para o G8, estabeleceu parcerias com a NATO e era até convergente com os EUA pós-11 de setembro na guerra ao terrorismo islâmico. Depois veio, porém, o alargamento da UE (e da NATO) ao Leste – porque o Leste livremente procurou a democracia ocidental, querendo voltar costas ao passado comunista e ao presente-futuro russófilo – e, em particular, as revoluções ucranianas de 2004 e de 2014, que mostraram a animosidade local em relação à sombra opressora de uma grande Rússia ali ao lado.

Em 2007, Putin apareceu na Conferência de Segurança de Munique com um discurso muito crítico em relação ao modelo unipolar euro-americano. Enquanto o ocidente mergulhou na grande crise capitalista de 2008, a Síria do tenebroso Bashar al-Assad serviu de campo de treino ao novo exército putinista, cujas barbaridades se mostraram ao mundo na Ossétia do Sul e na Abecásia georgianas logo nesse ano. Dispondo de uma marionete fidelíssima na Bielorrússia (Aleksandr Lukashenko), o alvo seguinte teria de ser a Ucrânia, a começar pela Crimeia e a terminar no Donbass, tudo partes do que em Moscovo se chamava (e chama) Novorossiya (a Nova Rússia).

O campeonato do mundo de futebol de 2018, que a FIFA atribuiu a Putin, funcionou como manobra de sportswashing e branqueou o que estava já em curso, a saber, que entre 2014 e o final de 2021 as campanhas militares no Donbass, com o argumento de defesa das populações russas locais contra a (inexistente) ofensiva “nazi” de Kyiv, mataram quase 15 mil civis. E a dependência energética da Europa face ao gás e petróleo russos fez o resto. Como os apaziguadores de outrora diante de Hitler, os líderes ocidentais não viram o real choque de civilizações em curso: de um lado a liberdade, do outro o neoimperialismo. Democratas ciosíssimos de vários direitos começaram a ver o “fascismo” espreitar em toda a parte – em Washington ou em França, na Andaluzia ou em Roma, e nos iliberalismos de Budapeste e Varsóvia; nunca se deram conta, ou nunca quiseram realmente ver, que o fascismo morava em Moscovo. Por uma questão de rigor histórico, será melhor designá-lo de russismo. Pode não haver campos de concentração (embora não saibamos se não haverá gulags entretanto reabertos), mas está lá muita coisa provinda de um passado que afinal não passou: o culto do líder, o elogio da guerra e da morte heroica, a doutrinação da juventude e das forças armadas, a perseguição de dissidentes e minorias, a exploração do ressentimento nacionalista, o unilateralismo da força contra o multipolarismo da legalidade internacional, e a diabolização do inimigo, tudo envolto no projeto óbvio de domínio de um volk sobre outro(s).

Nem isto fez de Vladimir Putin um pária universalmente condenado. Temo-lo visto, nos últimos dois anos. A União Europeia e os EUA de Biden (sublinhe-se, de Biden, porque depois de novembro de 2024…logo se verá) estão com a Ucrânia, e devem estar. Mas o mundo incerto de hoje é pós-europeu, pós-americano, pós-ocidental. Sergey Lavrov tem sido aplaudido por muitos países africanos e entre os BRICs há quem, por pensamentos, palavras, atos ou omissões alinhe de facto com a Rússia de Putin. Desde há mais de vinte anos, com uma cadência relativamente regular de golpes infligidos à comunidade internacional, Moscovo tem liderado o que se percebe ser o plano de uma nova ordem euroasiática – “patriótica, cristã, marcial, carnívora, heterossexual, filoprogenitiva, em contraposição à Europa decadente, pós-nacional, multicultural, apoiante do LGBT, acolhedora em relação aos muçulmanos e pacifista da UE” (Timothy Garton Ash). Como em tantas outras coisas, este retrato diagnostica problemas reais, de clivagem social, política internacional ou tribalismos identitários que as democracias ocidentais deveriam ter enfrentado e estar a enfrentar; mas os que os procuram atalhar escolhem meios indignos para o fazer, subvertendo valores, atropelando direitos e criando horizontes de um mundo terrível, devastado por ditaduras, guerras e intolerâncias que o remanso afluente pós-1945 e o triunfalismo democrático pós-1989 sonhavam ter enterrado definitivamente na história.

O chanceler alemão Olaf Scholz classificou o 24 de fevereiro de 2022 como zeitenwende: o início de uma nova era. A data foi, é, de facto o ponto nodal do que o Papa Francisco tem vindo a elaborar como uma “mudança de época”, e não apenas uma “época de mudanças”, ou “uma Terceira Guerra Mundial aos pedaços”. Desde há dois anos vivemos num presente-futuro que parece um regresso ao passado. Putin quebrou, no Donbass, como já o fizera na Crimeia ou na Geórgia, as regras mais basilares da ordem globalista liberal refundada em 1945 – a saber, a de que nenhuma fronteira pode ser alterada a não ser por meios pacíficos e com o consentimento de todos os Estados envolvidos; e a de que alterações de fronteiras impostas do exterior só são justificáveis para a reposição da legalidade violada ou por razões humanitárias, e sob mandato internacional (por isso a invocação do precedente do Kosovo por parte do Kremlin é improcedente). Mas Moscovo fez muito mais: invadiu a Ucrânia com barbarismo semelhante ao dos invasores nazis sobre as “terras sangrentas” (Timothy Snyder) do Leste europeu durante a Segunda Guerra Mundial. A barbárie que televisionamos é um conflito do século XXI, com drones e ferramentas cibernéticas; mas também um conflito à século XX, com tanques, artilharia pesada, cidades arruinadas, trincheiras lamacentas e corpos jazentes. Os frames de 2022-24 poderiam ser fotografias de 1914-18 ou de 1939-45. Os ucranianos mais velhos, aliás, referem-se ao exército putinista como nimtsi (“alemães”, ou seja, nazis!); tendo sobrevivido a um totalitarismo, estão a sucumbir a outro. 

No plano internacional, Vladimir Putin conseguiu o que nenhum líder da URSS fizera acontecer: empurrar a Finlândia e a Suécia para os braços da NATO, e apressar a corrida da martirizada Ucrânia e da assustada Moldávia ao ingresso na União Europeia. Por que angustiadas razões os putativos quintais da russkiy mir querem, afinal, deixar o lado de lá e vir para o lado de cá é pergunta que Putin nunca se faz, ou a que nunca responderá. Foi a mesma pergunta que John F. Kennedy dirigiu retoricamente a Nikita Khrushchov quando visitou o Muro de Berlim, em 1963. 

E agora, dois anos depois da grande invasão? Quando e como terminará a guerra na Ucrânia? Ninguém, com honestidade, poderá dizê-lo ou calendarizá-lo. Mais do que da sorte das armas no terreno, na determinação do futuro naquela nevrálgica parte do mundo (como no do braço-de-ferro entre Israel e o Hamas na Terra Santa), as variáveis mais importantes são-lhe exteriores. As eleições europeias de junho deste ano poderão reforçar ou quebrar o consenso comunitário da ajuda a Kyiv, e acelerar ou retardar a entrada da Ucrânia na UE, um dossier polémico para os outros que estão à porta e para os que, já cá dentro, desconfiam da “lestificação” do continente, e onde a pressa é inimiga da perfeição. Com ainda mais peso, as eleições presidenciais americanas poderão clarificar as coisas para melhor ou para pior, consoante a Casa Branca continue democrata ou regresse às mãos atrabiliárias de Donald Trump, cuja pré-campanha eleitoral para novembro deste ano já colocou sobre a mesa a eventualidade de uma rutura dos EUA com a NATO, no que tem de ser um alerta para que Bruxelas olhe para as (fracas) capacidades de defesa europeias perante uma Rússia em expansão. Em Washington, o destino de Volodymyr Zelensky não é separável do de Benjamin Netanyahu; e se um deles tiver de cair será, com maior probabilidade, o primeiro. Por fim, há ainda a incógnita dos BRICs e, muito em particular, da China. A “parceria sem limites” que Xi Jinping já foi afirmar em Moscovo ao seu sorridente anfitrião justificará um conflito sem quartel com um ocidente pró-ucraniano? Ou o velho e cautelar pragmatismo geoestratégico e comercial de Pequim quererá antes uma solução salomónica, pela qual Putin saia da guerra apenas com a Crimeia e Zelensky salve o resto do seu país? 

A guerra, estabeleceu o célebre Clausewitz, é a continuação da política por outros meios. Há anos que Moscovo segue este ensinamento à letra: daí o 24 de fevereiro de 2022. Contra esse modo bélico de ver o mundo, será preciso, em modalidade que envolva toda a comunidade internacional, encontrar vias para resolver pela política o que as armas não podem, não devem e não conseguem resolver. Vladimir Putin tem de ser devolvido à procedência, e a legalidade e a moralidade internacionais de alguma maneira repostas e salvaguardadas. A não ser assim, o mundo entrará no “vale tudo”. E a história está cheia de exemplos de como o “vale tudo” desembocou depressa no mais sortido e sórdido catálogo de barbaridades.