No momento em que escrevo este artigo o Ministério da Saúde (MS) continua a negociar com os Sindicatos Médicos (SM) a carreira e os salários dos médicos. Já está a fazê-lo há mais de um ano. Até ao momento sem resultados práticos.

O Ministério da Saúde centra-se na questão crítica dos serviços de urgência (SU), após milhares de médicos terem apresentado escusa de realizar mais de 150 horas extraordinárias por ano, tal como a legislação prevê. Sendo que um número significativo dos mesmos médicos já fez várias centenas de horas extraordinárias no SU. Este movimento inorgânico de médicos teve o seu epicentro no norte do país.

As propostas apresentadas pelo Ministério da Saúde não têm respeitado a equidade entre todos os médicos, não dignificam a profissão médica, não salvaguardam os direitos dos doentes, nem valorizam a carreira médica. O momento é crítico. Os Sindicatos dos Médicos não aceitam que o Ministério da Saúde dê com uma mão e retire com a outra. Que tenha uma estratégia de dividir para reinar. Qualquer negociação tem linhas vermelhas.

Os médicos são uma das duas profissões (juntamente com os investigadores) em que hoje o seu ganho médio mensal é inferior ao que era há dez anos (dados da DGAEP). Tiveram uma perda de poder de compra real de mais de 30%. Têm dos piores salários da Europa (dados do Eurostat de 2022) . Os médicos especialistas têm uma formação no ensino superior entre 11 e 13 anos. Têm uma responsabilidade pública, disciplinar, civil e penal sem paralelo com outra profissão. Têm como principal missão salvar vidas. A sua vida pessoal muitas vezes quase nem existe ou fica sempre em segundo plano. Fazem um número sem fim de horas extraordinárias. Por isso têm uma taxa de divórcio superior à média de outras profissões. E uma taxa de burnout e sofrimento ético muito elevada. Lideram nas taxas de suicídio (dados de estudos americanos). E a sua esperança média de vida é inferior à da população geral.

Por isso, a proposta dos Sindicatos dos Médicos é sensata, justa e respeita dados objetivos. Não querem deixar ninguém para trás. Querem uma negociação séria e transparente. Que incida sobre os salários base de todos os médicos, e não apenas de alguns. Desde o médico que começa hoje a trabalhar até ao médico que amanhã se vai reformar. Que valorize de forma substantiva e justa as horas extra realizadas no SU ou nas unidades de cuidados intensivos e intermédios. Que valorize a carreira nas suas múltiplas dimensões para todos os médicos, sem amarras ou cativações. Sem que os médicos sejam bloqueados no acesso real ao topo da carreira - categoria de assistente graduado sénior (prestam provas públicas perante um júri).

O país e os portugueses precisam que exista um acordo entre o Ministério da Saúde e os Sindicatos dos Médicos. Se não se concretizar um acordo justo, é possível que muitos mais médicos deixem de trabalhar no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Um risco maior e elevado que o Ministério da Saúde tem obrigação de conhecer. É que os médicos, nas atuais circunstâncias, fazem todo o seu trabalho programado (consultas, cirurgias, internamento, meios complementares de diagnóstico e terapêutica,...) incluindo SU e mais 150 horas extraordinárias no SU (nos casos aplicáveis). Se saírem deixam de fazer tudo isto. Estes são os mesmos médicos que disseram presente, sem limites, durante a pandemia. São aqueles que contribuem todos os anos para os números crescentes de consultas, cirurgias...

O Ministério da Saúde devia ter mais respeito pelos médicos. Devia ter mais respeito por uma profissão que construiu o SNS e o sistema de saúde, e que oferece de bandeja ao Governo indicadores de qualidade em várias áreas da saúde que nos colocam numa boa posição a nível internacional.

O Ministério da Saúde devia honrar Ricardo Jorge, Miguel Bombarda, Júlio de Matos, Abel Salazar, Corino de Andrade, Baltazar Rebelo de Sousa, Gonçalves Ferreira, Miller Guerra, Arnaldo Sampaio, Mário Mendes, Linhares Furtado, Albino Aroso, Vítor Ramos, Daniel Serrão, Walter Osswald, Miguel Torga, Júlio Dinis, Fernando Namora, João Lobo Antunes, Manuel Sobrinho Simões, Beatriz Ângelo, Maria de Sousa, António Sarmento, entre muitos outros. Devia honrar também a memória de António Arnaut e João Semedo (o último livro deles tinha como título “Salvar o SNS”).

E em todos eles honrar todos os médicos, que em 24 horas fazem mais de 120.000 consultas, mais de 20.000 episódios de urgência, mais de 2300 internamentos, mais de 2000 intervenções cirúrgicas, mais de 200 partos, mais um sem número de colheitas de órgãos e transplantes, procedimentos invasivos, biópsias, exames auxiliares de diagnóstico e terapêutica em radiologia, patologia clínica, histologia, endoscopias,...

Os médicos são os primeiros defensores dos doentes, os seus verdadeiros provedores. Num ano salvam milhares de vidas, tratam milhões de doentes, dão qualidade de vida a milhares de doentes, são o principal reduto da solidariedade e do humanismo, e regem-se por valores éticos e deontológicos naquela que é a profissão mais antiga e que tem um “ethos” próprio que não existe em mais nenhuma profissão ou condição.

O nosso ministro da Saúde é médico e político. Sabe que a Saúde é em Portugal, a seguir à liberdade, o melhor que o Estado democrático produziu nestes quase cinquenta anos. Sabe que ao SNS é há muito tempo pedido que faça o possível e o impossível. Sabe a importância que o SNS tem para todos os portugueses. Sabe que o princípio e o fim do SNS tem nomes, rostos e dramas. São as pessoas, os doentes. E é isto que nos deve unir.

Salvar o SNS é salvar as pessoas. E este devia ser um desígnio nacional em que todos têm acesso e direito à saúde. Voltar para trás não é uma opção. Deixo o apelo à ética política (que acredito que ainda possa existir), à verdade, aos direitos humanos dos profissionais que cuidam de todos nós e dos nossos cidadãos que precisam de cuidados de saúde. E que não se deixe embrulhar pelo ministro das Finanças. A esperança mantém-se. É a última a morrer. E nenhum de nós quer que isso aconteça. Todos nós somos potenciais doentes.