O que há de novo: a política, através do atual governo das esquerdas em Espanha, decidiu entrar em ação e chamar a ela o que erradamente, vai para quatro anos, tinha sido transferido pelo então governo PP para a justiça.
Em toda a última década o PP e grande parte do PSOE dedicaram-se a negar intransigentemente qualquer direito aos independentistas catalães. Agora, o governo de Pedro Sánchez ousa abrir o percurso, cheio de armadilhas, para conseguir o diálogo que possibilite tirar a questão catalã do impasse.
Há uma questão catalã. Metade dos cinco milhões de eleitores catalães tem mostrado, em sucessivas eleições, que tem aspirações de independência. Esta ambição é rejeitada de modo implacável por enorme parte do eleitorado do resto da Espanha. Este eleitorado agarra-se à constituição para argumentar que não é aceite qualquer discussão que envolva a soberania sobre qualquer parte do território do reino de Espanha.
Mas o problema existe e, se não for tratado, a inflamação que se manifesta de modo recorrente, agrava-se. É uma questão que é política e que tem de ser tratado de modo político.
Há quatro anos, perante a inflamação catalã cujos dirigentes ousaram uma consulta popular, o governo de Madrid reprimiu e remeteu o caso para a justiça, que puniu de modo que parece desproporcionado (penas entre 9 e 13 anos de cadeia para governantes e outros dirigentes independentistas) a audácia catalã.
A mão pesada da justiça espanhola pareceu a muitos catalães uma forma de vingança do espanholismo sobre aqueles que na Catalunha ousaram desejar alguma coisa diferente. O conflito catalão, tratado em modo de elefante numa sala de porcelanas, ficou assim com as hipóteses de algum compromisso ainda mais estilhaçadas.
Manter o conflito catalão em beco sem saída, já se viu, dá mau resultado para todos: em 2017, levou os nacionalistas catalães a arriscarem a via radical da declaração de independência, embora só com a intenção de forçar a discussão – porque sempre souberam que a independência, por agora, é uma utopia. Ficou aberta uma funda brecha entre parte dos povos da Catalunha e do conjunto da Espanha.
O tempo passado evidencia que há que negociar sobre as aspirações dos catalães e ter sabedoria para as harmonizar com o que é essencial para Espanha – talvez um dia seja de ponderar uma solução do tipo federação de estados de Espanha. Mas é, evidentemente, irrealista e disparate ignorar esta questão catalã.
O atual governo de Espanha, presidido pelo socialista Pedro Sánchez está em funções há exatamente três anos. Resultou de uma moção de censura de toda a oposição ao governo PP de Mariano Rajoy.
É um governo de coligação à esquerda (PSOE+Unidas Podemos). Teve a maioria validada nas eleições gerais em maio e em novembro de 2019. A maioria governamental depende do voto favorável de partidos nacionalistas, como o basco, e também de, pelo menos, a abstenção de um partido independentista catalão, Esquerda Republicana da Catalunha (ERC).
As direitas em Espanha ainda não conseguiram digerir o modo como foram afastadas do governo e a indigestão ficou mais aguda com a cooperação entre o primeiro-ministro Sánchez e um partido independentista catalão. A guerrilha das direitas contra as esquerdas cresceu e tornou-se guerra. Não há qualquer tipo de negociação entre as esquerdas no governo e as direitas que querem depressa voltar a governar Espanha e acabar com qualquer espécie de acordos com independentistas.
A questão catalã serviu para as direitas de Espanha passarem à postura tremendista contra o governo Sánchez. Acusam o chefe de governo de trair a Espanha. Argumentam que está a trocar a soberania espanhola sobre a Catalunha pelos votos independentistas que lhe permitem manter maioria para governar.
Até é possível que Sánchez queira procurar uma solução política que assegure a sustentação do governo.
Mas há que ter a generosidade de admitir que a ambição de qualquer líder é a de ser capaz de tirar do bloqueio e tratar de tentar resolver um problema que é político e é sério.
Reconheça-se que Sánchez, quando ainda estava na oposição (frequentemente criticado por “barões” do partido, o PSOE, até mesmo Felipe Gonzalez), sempre defendeu o diálogo e a negociação para procurar soluções para a questão catalã.
Ao tornar-se presidente do governo de Espanha, Sánchez assumiu que tinha a oportunidade para tentar o diálogo que preconizava. Confrontou-se com um impasse: os líderes catalães estão presos, entre eles o principal, mais político e mais dialogante, Oriol Junqueras, condenado a 13 anos de cadeia.
Obviamente, não há negociação possível quando os líderes de uma parte estão presos, na sequência de uma condenação que consideram mais do que desmesurada, injusta, injustificada e apenas decorrente da vontade de vingança.
É assim que Sánchez apontou o indulto aos independentistas condenados por serem independentistas, como forma de os libertar e assim percorrer a via necessária para criar espaços de sintonia e levar as partes para a mesa de negociações. Isto, com a intenção imediata de recuperar um pouco de calma e estabelecer alguma empatia entre as partes enfrentadas, e ousar procurar compromissos duradouros.
Mas as direitas de Espanha (PP+Vox+Ciudadanos), logo que lhes constou que Sánchez pensava indultar os independentistas, abriram guerra total e avançaram para a rua.
Os três partidos das direitas juntaram-se para convocar para a praça madrilena onde as direitas costumam exibir-se, Colón, uma manifestação declarada como “contra a traição de Sánchez” e “contra os indultos”.
De facto, foi uma manifestação contra Sánchez, contra o governo das esquerdas e contra qualquer intenção de diálogo com independentistas. Obviamente uma manifestação que faz parte da campanha para mais desgaste do governo das esquerdas.
A manifestação teve muita gente, algumas dezenas de milhar de pessoas (na guerra de números, os organizadores apontam para 125 mil, os opositores limitam a participação a 25 mil manifestantes), mas indiscutivelmente muito menos do que em outros momentos. Os líderes mais contidos, Pablo Casado do PP e Inês Arrimadas do Ciudadanos, tiveram o protagonismo desviado por Santiago Abascal, do Vox, e Isabel Diaz Ayuso, chefe da muito mediática ala dura do PP em Madrid.
Por entre gritos e um mar de bandeiras de Espanha, Ayuso, ponta de lança do PP descomplexado, clamou que estava ali para defender a legalidade e a Constituição. Foi aplaudida com vibração pelos presentes, que não tiveram em conta que os indultos são legais e cabem na Constituição – o mais influente dos líderes que o PP já teve, José Maria Aznar, concedeu mais de cinco mil indultos. Os indultos em Espanha até incluíram o general que foi estratego da tentativa golpista que incluiu assalto ao parlamento em 23 de fevereiro de 1981.
A relativamente escassa participação de apoiantes das direitas na manifestação deste domingo pode indiciar que há neste campo que não goste da via mais radical ou até fanática para viver a política.
Os moderados à direita não devem ter gostado mesmo nada de ouvir Isabel Ayuso a pisar uma linha vermelha na relação dos partidos fundadores da democracia espanhola com a monarquia, ao interpelar Felipe VI sobre os indultos: “O que é que o rei de Espanha vai fazer, vai assinar esses indultos. Vão fazer dele cúmplice disto?” Esta imoderada Ayuso obrigou Casado, líder do PP a corrigi-la e a retirar o rei de qualquer implicação.
É neste quadro partidário polarizado vai avançar, provavelmente já no final desta semana, com o indulto para os ex-governantes e dirigentes catalães condenados pela ação independentista.
O principal dos líderes independentistas, Oriol Junqueras, facilitou a opção de Sánchez, ao declarar que exclui “qualquer ação unilateral” como forma de pretender a independência da Catalunha. Junqueras retira assim o independentismo catalão do quadro que Espanha repudia como ilegal.
Após a libertação dos indultados vai seguir-se, é fácil antecipar que por entre clamores das direitas mais estridentes, a abertura, finalmente de uma mesa de diálogo, à partida entre os dois governos, o de Espanha e o da Catalunha, este baseado em partidos independentistas.
Não vai ser fácil, vai ser muito complexo.
Mas há uma oportunidade para quem governa Espanha demonstrar a inteligência, que requer audácia e coragem, de seduzir os catalães que agora reclamam independência, de que podem sentir-se cómodos dentro de um quadro democrático negociado com o Estado espanhol. O sentimento independentista existe, é uma realidade comum a mais de dois milhões de catalães. Para o Estado espanhol há linhas vermelhas. Mas, quando o diálogo substitui a imposição, a democracia fica a ganhar.
Qualquer acordo sobre a questão catalã é, considerado o fosso entre as partes, muito difícil. Há, porém, uma oportunidade que passa pela possibilidade de os atuais líderes em Madrid e em Barcelona, serem capazes de generosa grandeza política.
Sánchez tem, aliás, uma rara oportunidade para alcançar o estatuto de estadista caso seja capaz de avançar para uma solução do conflito catalão. O mesmo para os líderes em Barcelona.
Claro que o clima partidário e mediático em Madrid vai, entretanto, continuar muito inflamado. Mas está, finalmente, a ser aberta uma porta que leva à possibilidade de solução de uma das principais crises atuais no Estado espanhol.
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