Nos EUA, as mortes por overdose de derivados do ópio atingiu o número impressionante de quase 50 mil em 2017 – 14,9 por 100 mil habitantes. (Em Portugal, no mesmo ano, verificaram-se 38 mortes, 0,38 por 100 mil).
Em geral, o flagelo das mortes por overdose é atribuído aos traficantes de drogas que são, evidentemente, os negociantes que levam ao consumo e ao quase inevitável excesso. Mas, num caso particular – o do tratamento para as dores crónicas, que afligem milhões de pessoas – o mercado ilegal de estupefacientes divide as culpas com o mercado legal dos remédios. Estes painkillers, remédios para aliviar a dor, têm de ser administrados com muito cuidado, criando um equilíbrio precário entre o alívio e o vício. Esse equilíbrio desequilibrou-se, algures nos primeiros anos deste século, sem que houvesse consciência da autêntica epidemia que se estava a instalar. E só há poucos anos as autoridades começaram a agir legalmente contra os responsáveis, o que não será suficiente para travar a calamidade, mas poderá ser um primeiro passo.
Opiácios são os derivados do ópio, produzido pela papoila da espécie Papaver somiferum. Os mais conhecidos, a heroína e a morfina, funcionam como analgésicos, mas só a morfina tem uso terapêutico generalizado; a heroína é utilizada sobretudo para fins “recreativos”. Todos eles, como é sabido, são altamente viciantes e susceptíveis de provocar a morte, quer por uso continuado, quer por overdose. A indústria farmacêutica procurou produzir sintéticos análogos, a que se dá o nome de opióides, sendo os mais conhecidos a oxicodona e o fentanil. (Este não é um artigo científico; que nos desculpem os especialistas pelas simplificações.) A oxicodona é duas vezes mais forte do que a morfina; o fentanil, cinquenta vezes mais potente.
Para se ter uma ideia da divulgação dos opióides nos Estados Unidos, basta saber que a DEA (Drug Enforcement Administration) contabilizou a venda em farmácia de 76 mil milhões de doses de oxicodona e hidrocodona entre 2006 e 2012, a grande maioria genéricos.
Estes valores correspondem, evidentemente, à venda legal, sustentada por receita médica. Os remédios destinam-se a pessoas que têm dores crónicas de vários tipos e, desde que prescritos criteriosamente, levam a uma dependência com que as pessoas podem viver normalmente, sem dores que restrinjam as suas actividades.
Por volta de 2006, algumas empresas farmacêuticas desenvolveram opióides que se viriam a tornar genéricos de baixo custo. O primeiro remédio de marca foi o OxyContin, inventado pela Perdue Pharma, uma pequena produtora de Stanford, no Connecticut. Seguiram-se outros fabricantes, como a Teva Pharmaceutidals, a Janssen, e a irlandesa Mallinckrodt. Um caso interessante é o da Johnson & Johnson (sim, a mesma que vende talco e pensos adesivos, entre centenas de produtos). A J&J tem um contracto com os agricultores de papoilas do ópio na Tansmânia que lhe permite fornecer 60% dos opiáceos usados na produção de opióides, além de ser dona da Janssen, que produz pílulas (cujos direitos vendeu em 2015) e um penso de fentanil. A partir de 2012, pelo menos seis empresas, entre elas a SpecGX, Par Pharmaceutical e Activis Pharma, começaram a comercializar opióides genéricos mais baratos, incluindo versões do OxyContin – todas juntas produzem actualmente cerca de 90% dos opióides.
Para se ter uma ideia do mercado de que estamos a falar, o número de overdoses por opióides legais, metadona, e outros narcóticos sintéticos (sobretudo fentanil) passaram de 8.000 em 1999 para 18,500 em 2007 e para 47.600 em 2017.
Os números nem sempre batem uns com os outros, mas são sempre assustadores: em Setembro deste ano, o Centro de Controle de Doenças (CDC) apresentou um relatório indicando que as mortes por overdose subiram 11,4% entre 2014 e 2015, passando de 46.640 para 52,404 pessoas, sendo 63% devidas a opióides.
Em Julho deste ano, uma Comissão especialmente criada pelo Presidente e dirigida pelo Governador de New Jersey, Chris Christie, concluiu que os opióides estão a matar cerca de 142 pessoas por dia, “ou seja, um 11 de Setembro cada três semanas”.
Este, o mercado legal. Porque o alto custo dos remédios (cujo preço, nos Estados Unidos, não é regulado nem comparticipado) levou a que muitos viciados passassem para a heroína vendida na rua. Os traficantes, vendo a oportunidade, colocaram a heroína a preços abaixo dos opióides, multiplicando geometricamente o número de dependentes.
Segundo um relatório assinado pelos economistas William N. Evans e Ethan Lieber da University de Notre Dame, e Patrick Power, da Boston University, “quanto a Oxicodona entrou no mercado paralelo (revenda ilegal de pílulas obtidas por receita média) o preço era de um dólar por miligrama. Duas pílulas por dia custavam 160 dólares. O preço da heroína é muito variável, mas é possível conseguir os mesmos efeitos por um valor diário muito inferior.”
Sobretudo nas pequenas cidades, onde as oportunidades de trabalho são menores, a ocupação do tempo mais difícil e os serviços médicos mais frágeis, famílias inteiras viciaram-se, num cenário de fim do mundo em que são encontradas pessoas a agonizar na rua, ao volante de carros com os filhos nos bancos de trás, em centros comerciais, em parques e dentro de casa. Às vezes os paramédicos são chamados pelos vizinhos para vivendas de porta aberta onde pais e filhos adolescentes estão espalhados pelo chão. Os únicos remédios de que dispõem para estes casos é uma injecção de Naxolone, ou o spray nasal Narcan. Todas as equipas de paramédicos andam com estes produtos no seu estojo de primeiros socorros. Vídeos divulgados nas televisões e redes sociais despertaram o país para uma realidade brutal. Perante estes factos, as procuradorias gerais de várias cidades e estados decidiram investigar e indiciar os responsáveis pelo que parecia ser um processo imparável.
Entre as várias empresas responsáveis, as investigações destacaram imediatamente a Perdue Pharma, propriedade da família Sackler. A partir de 1995, quando a Oxicodona foi aprovada para uso clínico, a Perdue desenvolveu uma campanha nacional muito agressiva, junto dos médicos, convencendo-os de que o medicamento era tão eficiente como os opiáceos, mas muito menos viciante. Não só a empresa sabia que isso não era verdade, como o uso generalizado reforçou essa percepção. Há um email do Presidente da Perdue, Richard Sackler, de 2001, em que ele dá direcções aos executivos e delegados médicos (que é como se chamam os propagandistas que visitam os médicos) para colocar as culpas nos utilizadores: “Temos que bater na tecla dos abusadores de todas as maneiras. São eles os responsáveis pelo problema. São criminosos sem remissão.” Noutro email, Sackler afirma: “Esperava maiores vendas. O que podemos fazer para as fazer crescer?”
Uma das coisas que a Perdue fez foi modificar a fórmula do medicamento. Segundo o relatório acima citado de Evan e Lieber, é possível datar essa mudança em precisamente entre Agosto e Setembro de 2010. Porquê? Porque a nova fórmula não permitia que os comprimidos fossem esmagados em pó, o que os tornava inúteis para os viciados que se injectavam. Segundo o relatório, “Em Agosto, o uso de Oxycontin diminuiu; em Setembro, o uso de heroína aumentou.”
Foi com as provas destes e de doutros emails que a Procuradora Geral do Massachussets, Maura Healey, acusou a Perdue e oito membros da família Sackler de provocar a epidemia de opióides no Estado. Porque, um outro aspecto sinistro do caso é a notoriedade da família; os Sackler são conhecidos nos Estados Unidos e no Reino Unido por serem grandes beneméritos das artes e da cultura. Ao longo dos anos, desde que começaram a enriquecer exponencialmente, que têm doado a museus e instituições culturais quantias astronómicas. Ofereceram edifícios, alas e patrocínios multimilionários ao Smithsonian de Washington, ao Metropolitan Museum de Nova Iorque e ao Tate Modern de Londres, entre outras entidades de nível mundial. Há um Instituto Sackler na Universidade de Columbia, uma Biblioteca Sackler na Universidade de Oxford, uma Ala Sackler de Antiguidades Orientais no Louvre, um claustro Sackler no Victoria and Albert Museum. A lista é impressionante.
Os Sackler são actualmente cerca de vinte, mas as responsabilidades não podem ser igualmente distribuídas. Inicialmente, um Arthur Sackler comprou a pequena empresa centenária em 1952 e dirigiu-a com dois irmãos, Mortimer e Raymond, que continuaram depois da morte do mais velho, em 1987. Os descendentes dele, embora continuem a receber milhares de milhões, deixaram de participar na gestão. Richard, que escreveu os emails comprometedores, é filho de Raymond. Os Sackler estão espalhados pelo mundo – alguns vivem na Europa – e gastam biliões a patrocinar as artes, mas alegam que não sabiam de onde vinha o dinheiro. Quer dizer, sabiam que era da Perdue Pharma e das empresas que entretanto nasceram à sua volta, mas não faziam ideia do fenómeno Oxycondin. O facto é que não gostavam de dizer de onde vinha a fortuna, o que pode ser uma prova de culpa circunstancial, mas não mais do que isso. Agora mostram-se intimidados e atrapalhados com o escândalo à volta do seu nome, que levou inclusive a que muitas instituições que apoiavam tenham cortado relações com eles.
Mas o desprezo das instituições culturais é o menor dos seus males. Num crescendo, mais de dois mil municípios, 24 Estados e cinco territórios norte-americanos juntaram-se num mega processo, com o objectivo de fazer a Perdue e os Sackler pagarem pelos danos que causaram.
Mais processos envolveram outras empresas. Este ano, a Johnson & Johnson concordou em pagar 527 milhões de dólares ao Estado de Oklahoma e a Teva 85 milhões.
Finalmente, sábado passado, chegou-se a um acordo inédito no foro de Nova Iorque, depois de muitas alegações e contra-alegações. A Perdue aceita pagar dez mil milhões de dólares aos lesados (na verdade, aos Estados e Municípios, que depois distribuem em tratamentos ou indemnizações), e a entrar em falência, convertendo-se numa espécie de fundação que continuará a vender o Oxycontin e os medicamentos a desenvolver para combater o vício da droga, mas cujas receitas serão usadas para indemnizar e tratar as vítimas. A família Shackler perde a propriedade da empresa, obriga-se a entregar três mil milhões de dólares do seu dinheiro, e ainda a entregar cerca de mil e quinhentos milhões de dólares pela venda de outra empresa, a Mundipharma.
Numa afirmação que dispensa comentários, a Perdue Pharma declarou que entrou no acordo porque, se continuasse a litigar com os queixosos, os processos poderiam levar anos, “atrasando o tratamento e a indemnização das vítimas”. Quer dizer, assim como vendeu agressivamente e de má fé o OxyContin para aliviar as dores dos sofredores, agora, só aceita pagar pelo que fez para aliviar os prejuízos causados.
Contudo, o caso não fica encerrado. Alguns Estados não acham a indemnização suficiente. Muitos interessados, incluindo a artista Nan Golding, que já foi viciada em opióides, também não estão satisfeitos.
E ainda há empresas farmacêuticas na calha para serem processadas.
A questão que se levanta, com certeza, é se estas indemnizações são suficientes para compensar o sofrimento que os seus autores provocaram. Mas esse sofrimento é impossível de medir, tanto em termos monetários como sociais.
Por outro lado, há os traficantes de droga ilegal que continuam em larga medida sem serem chamados à justiça, mesmo que um ou outro El Chapo seja apanhado na rede.
Podia-se concluir que, enfim, não há justiça neste mundo. Mas talvez seja mais positivo arrematar de outro modo: de vez em quando, alguma justiça se consegue. Pena que as 400 mil pessoas que morreram de
overdose nos Estados Unidos, entre 1999 e 2017, não estejam cá para ver.
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