Há uns anos, calhou-me conduzir durante uma semana pelas estradas de Inglaterra. Quando cheguei ao balcão da empresa de aluguer de automóveis e me perguntaram se preferia um carro com mudanças manuais ou automáticas, pensei durante uns segundos: já vou estar sentado do lado do pendura com um volante à frente; já vou ter de conduzir pelo lado esquerdo; já vou ter o carro todo ao contrário — pelo menos que as mudanças sejam como estou habituado. “Manuais”, respondi.
Quando, por fim, me sentei ao volante do carro, percebi o erro: as mudanças estão precisamente no mesmo sítio — mas comigo do lado errado, tinha de usar a mão esquerda. Devagarinho, com a minha mulher ao meu lado com o ar desconfiado de quem está a ver a vida a andar para trás, ou pelo menos a andar para a frente do lado errado, saí com o carro do estacionamento. Meti a primeira, avancei, meti a segunda e continuei assim. Andei uns metros a 5 milhas por hora (até isso era diferente, caraças). Continuei mais uns quantos pés a 5 milhas por hora.
O que vale é que eram duas da manhã. Comecei a ganhar confiança.
Decidi pôr a terceira mudança. O meu cérebro emite a ordem, que lá vai, como habitualmente, pelo sistema nervoso até chegar à mão do costume, que tenta controlar as mudanças, batendo ruidosamente na porta à minha direita.
Atrapalho-me. O carro vai abaixo. Respiro fundo. Pergunto à minha mulher se está tudo bem. Ela diz que sim com a cabeça, sem conseguir falar. Avanço de novo. Obrigo a mão esquerda a pôr as mudanças. Começo a acelerar. Sorrio: isto não é assim tão difícil.
Cheguei à primeira rotunda, entro (tudo ao contrário) e dou de caras com um veado de olhos esbugalhados a olhar para mim. Grito. Travo. Bato de novo com a mão na porta. Paro a poucas polegadas do simpático animal. O motor novamente em baixo. Consegui vislumbrar uns quantos veados bebés no centro da rotunda, à espera da mãe. Não matei a mãe do Bambi. Já é alguma coisa.
Minutos depois, vou pela auto-estrada fora, a caminho da casa do meu irmão (o responsável por estarmos naquele país às avessas). Vou imaginando para mim o momento de pôr de novo as mudanças, tentando ensinar o meu corpo, à pressão, a alterar os automatismos que aprendera durante anos.
Quando cheguei, nessa primeira noite, consegui estacionar bem. Fomos dormir. No dia seguinte a aventura recomeçava.
Na semana que se seguiu, bati não sei quantas vezes com a mão na porta; a Zélia gritava, em pânico, quando me aproximava de uma qualquer bicicleta; fiquei parado em rotundas umas quantas vezes a tentar perceber como tudo funcionava. Mas não bati em ninguém e fui-me habituando àquele trânsito virado ao contrário. Era um pouco como quando aprendi a conduzir: sabemos controlar a máquina e pensamos conscientemente nos gestos que é preciso fazer. Não é completamente desagradável. Ainda por cima, viajar é muito bom e Inglaterra não é de deitar fora.
Mas toda esta história serviu para chegar a este ponto e contar o que aconteceu, uma semana depois, à chegada ao Aeroporto de Lisboa. Saímos do avião, satisfeitos com a semana de conversa, passeio e aventura (e com muitos livros na bagagem, que é sempre uma coisa que me deixa feliz).
Fomos de táxi até casa. Foi então que, durante alguns segundos, o trânsito lisboeta me pareceu estranho, como se estivesse ao contrário. O efeito desapareceu num instante, como a luz que fica nos olhos durante uns segundos depois de olharmos para uma lâmpada que se desliga. Mas foi um prazer: ver a cidade onde vivo pelos olhos de quem chega e estranha o que vê — uma estranheza boa, que nos deixa mais preparados para os dias que recomeçam. Não sei se é assim com todos, mas é também por isso que é tão bom viajar.
(Pouco depois, já malas arrumadas, tivemos de ir não sei onde. Entramos no carro. Conversamos enquanto ligo a ignição. Quando chega o momento de pôr a marcha-atrás, depois de uma semana a conduzir num carro ao contrário, bato com toda a força com a mão na porta à minha esquerda. Foi só dessa vez. A normalidade voltou em força e voltámos aos dias de sempre.)
Bom regresso e bom Setembro!
Marco Neves | Escreve sobre línguas e outras viagens no blogue Certas Palavras. É autor de vários ensaios sobre a língua e ainda do romance de aventuras A Baleia que Engoliu Um Espanhol.
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