António Costa diz que odeia "ser autoritário". Não vou, por isso, focar esta crónica naquilo que seria um ataque à democracia e à liberdade — porque uma coisa é a evasão de privacidade, outra é a invasão de privacidade, ou seja, comprometer o direito de escolha de cada um. Mas vou falar da (in)eficácia da medida e da estratégia do governo em matéria de Covid-19.
Começo por rebater uma afirmação que o primeiro-ministro fez ontem em Bruxelas, à margem de um encontro com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen: "É impensável termos uma solução que viole a protecção de dados. Agora, não há qualquer violação da protecção dos dados com as condições de anonimato que a aplicação tem". Só que há.
A questão foi levantada por Luís Aguiar-Conraria, professor de Economia na Universidade do Minho, aqui e a resposta não se fez esperar. Afinal, Google e Apple apenas aceitaram desenvolver a tecnologia para a app StayAway Covid no pressuposto expresso de que esta é de utilização "voluntária". E o governo assinou por baixo.
Como explica aqui Paulo F. dos Santos, cuja empresa esteve envolvida no desenvolvimento da aplicação, um dos requisitos para desenvolver a app foi a garantia de anonimato do utilizador, daí a opção tecnológica de usar Bluetooth, com limitações que só foram ultrapassadas pelo esforço conjunto da Apple e da Google, que desenvolveram uma API [Interface de Programação de Aplicação] específica, a GAEN, que só pode ser usada por uma única app em cada país, com aval do governo e voluntária.
Existem ainda outros entraves, como a GAEN não funcionar nas versões mais antigas do Android e do iOS ou em algumas versões Huawei, e ter uma cobertura potencial limitada a 6,5 milhões de utilizadores. Tudo pormenores que, aparentemente, António Costa e equipa não conhecem ou esqueceram. Mas isso não é o pior.
O pior é que os médicos estão sobrecarregados de burocracia, tão sobrecarregados que quase não têm tempo para dar assistência aos seus doentes. Actualmente, os médicos de família têm de notificar os casos suspeitos e confirmados no Sinave, o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica, introduzi-los no Trace COVID-19, a ferramenta de acompanhamento, fazer contact tracing e manter doentes em vigilância e auto-cuidados, passar receitas e pedidos de testes e, por fim, gerar um código para a app StayAway Covid. Isto tudo, utilizando um sistema operativo que muitas vezes não responde ou vai abaixo e em computadores obsoletos.
Talvez por isso, mas não só, até ontem tinham sido gerados apenas 430 códigos, embora desde o dia 1 de Setembro se tenham registado mais de 35 mil casos positivos em Portugal. Destes, só 179 pessoas infectadas introduziram o código recebido na app. No total, 152 pessoas ligaram para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) por terem recebido uma notificação de proximidade com pessoa infectada.
Mas, por causa da legislação sobre protecção de dados, a notificação de proximidade com pessoa infectada pode ser absolutamente irrelevante, uma vez que não nos diz quem ou onde. E pode até sinalizar falsos alarmes.
Para receber a notificação, infectado e contactos têm de ter a aplicação activa, não basta estar descarregada no telemóvel, bem como ter estado a menos de dois metros durante um período mínimo de 15 minutos. Agora imagine: se esteve a almoçar numa esplanada, num restaurante que separa com um vidro inteiro o interior do exterior, e do lado de dentro, na mesa ao "seu lado", está alguém que vem a testar positivo e cumpre todas as regras, introduzido o código na app, o leitor recebe uma notificação de contacto de proximidade, ainda que a possibilidade de contágio seja zero.
Mas, mesmo sem estes imponderáveis, entre ter algum sintoma, reportá-lo, fazer o teste e receber o resultado passaram tantos dias que quando o código for, finalmente, introduzido na app, já pouco se poderá evitar.
Como diz Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública: "Andamos há meses a dizer que é preciso recrutar mais pessoas, que os serviços não têm capacidade, e continuamos alegremente a achar que o problema é as pessoas não terem instalado uma app. Assim é complicado".
O que Ricardo Mexia e outros médicos queriam era "uma estratégia objectiva para enfrentar a pandemia". Para este médico de saúde pública, o confinamento foi uma oportunidade para ganharmos tempo para planear. "E pergunto: o que é que se planeou?", questiona.
Como a jornalista sou eu, devolvo a questão. "Nada", confessa o presidente da ANMSP, "vejo muito pouco, e é muito triste que seja assim. Em seis meses não se treinou nem se recrutou ninguém. Eu também posso dizer que vou contratar 4 mil pessoas, é fácil, fica dito. Mas o facto é que na prática, nas unidades de saúde, não há recursos. Ponto". E os que foram mobilizados — e não contratados — já regressaram às suas unidades.
Este é um problema que "existe sem a pandemia, mas que a pandemia agravou". Ricardo Mexia não se recorda de terem existido contratações. "A única coisa que houve, que eu tenha visto, foram dois concursos: uma para a ARS do Alentejo outro para a ARS do Algarve, um com seis, outro com oito médicos. E mesmo estes, não sei se já estão ao serviço. Se a resposta é esta, catorze pessoas, estamos conversados".
A proposta do governo especifica a obrigatoriedade de utilização da app StayAway Covid "no contexto laboral ou equiparado, escolar e académico", ou seja, exactamente nos ambientes em que é mais fácil identificar contactos em caso de infecção, o que torna dispensável a aplicação, que poderia ser útil para quem frequenta transportes públicos, restaurantes, supermercados ou outros locais movimentados.
Enfim, faço meu o desabafo de Ricardo Mexia: "É uma falta de visão que não consigo perceber". E, em maré de citações, aproveito para parafrasear Gertrude Stein: Uma ideia parva é uma ideia parva é uma ideia parva.
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