Repare na expressão «já caiu umas pinguinhas». Parece ter um erro de concordância. No entanto, o que aqui acontece é — para usar um termo técnico — a síncope do pronome «ele». A expressão original seria «ele já caiu umas pinguinhas», como em «ele há coisas». Este sujeito existe e é singular – só que em português desaparece (como acontece com muitos sujeitos), ficando apenas visível na conjugação verbal.

É também esta a explicação para a forma peculiar como o verbo «haver» se comporta: dizermos «há três pessoas na sala» porque temos ali um sujeito oculto que concorda com o verbo («ele há»). O mesmo acontece na expressão «tem dias», perfeitamente gramatical em português de Portugal e onde, na verdade, não há falta de concordância.

As línguas, às vezes, fazem uso de pronomes que servem apenas para ocupar espaço sintáctico e nada querem dizer na realidade (em inglês, por exemplo, «it is raining»). Depois, línguas como o português europeu dão um passo em frente e permitem que esse pronome desapareça (a tal síncope), deixando um rasto no verbo, que continua a concordar com o tal pronome desaparecido.

Algumas pessoas põem as mãos na cabeça porque as frases («Já caiu umas pinguinhas» e o delicioso «Tem dias») não parecem cumprir uma simples concordância – quando, na verdade, estas frases estão a seguir mecanismos mentais bem mais complexos e profundos.

Será isto desculpa? Uma forma de justificar erros? Não, por esta razão: os mesmos falantes que dizem «tem dias» não têm qualquer dificuldade em dizer «eles têm medo» ou «os carros caíram». Há, de facto, um uso sistemático da concordância com esse pronome oculto, que – aliás – é a origem de outras construções, como a tal conjugação singular do verbo «haver».

Eu sei, no caso destas expressões, a concordância com um pronome desaparecido é aceitável na oralidade e menos na escrita formal. Até nisso a gramática é complexa – o que pode ser aceitável numa situação informal pode ter de ser evitado na escrita. Porquê? Por vários motivos, sendo um deles este: a escrita tem regras mais simples e menos flexíveis. E, sendo mais permanente, está sujeita a certas elaborações conscientes que, às vezes, corrigem, de forma insegura, aquilo que o inconsciente lá pôs sem medo. Lá está: a inteligência consciente tem algumas manias estranhas.

Repare: perante «tem dias» e «caiu umas pinguinhas», os linguistas fazem testes, investigam e tentam descobrir o sistema por trás da língua que põe os falantes a dizer, de forma sistemática, estas construções. É um exercício de análise que não é nada fácil.

Já quem pensa a língua assim ao de leve acha que está errado e pronto. É mais fácil, de facto. Mas, o que é triste é isto: quem pensa pouco sobre o assunto atreve-se depois a dizer que os linguistas não acreditam em regras. Não acreditam eles noutra coisa! Aquilo que os linguistas estudam são essas regras inconscientes, bem mais complexas e difíceis de entender que as regrazitas que vamos decorando ao longo da vida.

Ah, mas não vale a pena: em tantas conversas sobre a língua o discurso é só este: «As regras do português estão a desaparecer! É o fim da civilização na boca dos portugueses! Se continuamos assim, qualquer dia o português não tem regras!»

É um discurso gritado… E gritado há séculos…

E, no entanto, a língua lá continua com regras, bem complexas.

Aliás, mesmo que amanhã os dicionários desaparecessem todos e as gramáticas com eles, teríamos muito mais dificuldade em ler e em definir o que é a norma-padrão (e por isso não desejo nem por sombras tal hecatombe), mas a língua continuaria cheia de regras, excepções, lentos movimentos de mudança, dialectos, palavras com significados subtis e tudo o mais.

Os dicionários, as gramáticas – são tudo formas de ajudar a ensinar e a aprender a língua e de fotografá-la o melhor possível, com uma ou outra tentativa de impor esta ou aquela regras de etiqueta (que os falantes seguem ou não por motivos quase insondáveis). Mas não são os dicionários e as gramáticas que criam a língua. Talvez ajudem a estabilizá-la – nos dias bons.

Todas as línguas, mesmo as línguas de povos escondidos em obscuras florestas, têm regras – e têm regras complexíssimas. As línguas dos países com uma cultura mais complexa não são melhores ou mais completas: têm, quando muito, mais vocabulário porque são usadas para falar de mais assuntos. Mas as regras gramaticais não são necessariamente mais subtis ou mais complexas. E, repare: as regras nos livros de gramática que temos nas estantes são, quase sempre, simplificações, tentativas de prender à página essa borboleta gigante que é a língua. Mas ela raramente se deixa apanhar por completo…

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(Este texto foi publicado anteriormente no livro Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português.)

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras.