Caro leitor,
Provavelmente já ouviu falar e, como quero que não se esqueça, falo-lhe do Direito ao Esquecimento. Para largos milhares de cidadãos que já ultrapassaram graves problemas de saúde, como é o caso dos sobreviventes de cancro pediátrico, este direito diz-lhes muito.
O meu nome é Tiago Costa e sou sobrevivente de cancro pediátrico. Por ter tido uma doença oncológica no passado, não irei estar em pé de igualdade com quem não passou por nenhum grave risco de saúde quando tentar ter acesso a um seguro de saúde ou de vida, no caso de um empréstimo bancário.
O facto de ter passado por uma doença oncológica aos 10 meses de idade, faz com que tenha que enfrentar graves restrições na minha vida pessoal e barreiras sociais ao tentar aceder a um empréstimo bancário ou a um seguro de saúde, vendo o prémio do mesmo ser inflacionado ou recebendo uma resposta negativa mesmo que não tenha qualquer recordação da doença na minha infância.
Tal como eu, muitos outros sobreviventes de cancro pediátrico vão ter de lidar com esta situação, apesar de terem tido uma doença oncológica quando ainda não sabiam andar ou falar, mesmo que hoje em dia façam uma vida normal.
Este é sem dúvida um tema crucial para muitos sobreviventes de cancro pediátrico, agora jovens adultos, que gostariam de seguir com os seus projectos de vida. Na Europa existem 35 mil casos de cancro pediátrico por ano e meio milhão de sobreviventes. Em Portugal, são diagnosticados 400 novos casos por ano e as taxas de sobrevivência, que chegam aos 80%, acompanham os números de vários países europeus.
Com o trabalho de sensibilização que a Acreditar tem vindo a fazer, dando voz às experiências e testemunhos de sobreviventes, podemos sonhar que em breve também existirá, em Portugal, uma lei que consagre o direito ao esquecimento para sobreviventes de cancro, juntando-nos assim aos 4 países europeus que já reconheceram este direito – França (2016), Bélgica e Luxemburgo (2020) e mais recentemente os Países Baixos (2021). Na maioria destes países, os sobreviventes de cancro não necessitam de declarar informação clínica sobre uma doença oncológica, dez anos após o fim do tratamento, quando o diagnóstico é feito em idade adulta, e após cinco anos quando o diagnóstico é feito até aos 21 anos.
Para os jovens sobreviventes portugueses é fundamental que esteja acautelado na lei a garantia da não necessidade de declaração de informação sobre a doença oncológica após os seus tratamentos. Deverão também existir tabelas de referência que permitam definir termos e prazos para determinadas patologias ou incapacidades, que correspondam ao progresso terapêutico, aos dados científicos e ao conhecimento sobre o risco de saúde que cada patologia representa. Deve ainda ficar esclarecido qual será a entidade que ficará responsável por criar e actualizar estas tabelas. Pela nossa experiência como associação de doentes, é relevante a possibilidade de serem acrescentadas garantias para outros tipos de discriminação, como a que por vezes existe em contexto laboral.
Todos os cidadãos devem ter a mesma dignidade social e ser iguais perante a lei. A discriminação com base em tipos de deficiência e risco agravado para a saúde deve ser proibida e punida. Todos os sobreviventes de cancro pediátrico devem ter a oportunidade de ter acesso a um contrato de seguro justo, tal como o resto da população e as instituições de serviços financeiros devem informar estes ex-doentes e consumidores dos seus direitos.
É por isso que, com grande satisfação, a Associação Acreditar e os jovens sobreviventes que a ela pertencem viram este tema ser discutido na Assembleia da República no passado dia 14 de Maio. A aprovação do projeto de lei do PS, que vai ser agora discutido na especialidade, deixa-nos assim mais confiantes de que no futuro será mais fácil prosseguir com os nossos projectos de vida, não sendo discriminados em áreas importantes como a dos seguros e, esperemos, laboral.
É importante destacar a intervenção que as organizações de doentes têm e que poderão ter no que diz respeito ao seu envolvimento em algumas tomadas de decisão, na defesa dos doentes.
Para além do papel ativo em questões relativas à oncologia pediátrica em Portugal, a Acreditar está em diferentes organizações europeias que têm sido decisivas na discussão do direito ao esquecimento junto dos Estados-membro, como é o caso da Childhood Cancer International (CCI) .
O direito ao esquecimento está ainda incluído no pilar da qualidade de vida dos doentes e sobreviventes de cancro do Plano Europeu na Luta Contra o Cancro, apresentado pela Comissão Europeia no passado mês de Fevereiro.
Esperemos que esta mudança legislativa possa servir de inspiração para muitos outros grupos de sobreviventes de cancro pediátrico na Europa, de forma a garantir que um anterior diagnóstico de cancro não seja motivo de discriminação no futuro.
Tal como disse Margaret Mead: "Nunca duvide que um pequeno grupo de cidadãos activos e empenhados pode mudar o mundo; na verdade, é a única coisa que alguma vez o fez mudar".
Sobre a Acreditar – Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro
A Acreditar existe desde 1994. Presente em quatro núcleos regionais: Lisboa, Coimbra, Porto e Funchal, dá apoio em todos os ciclos da doença e desdobra-se nos planos emocional, logístico, social, entre outros. Em cada necessidade sentida, dá voz na defesa dos direitos das crianças e jovens com cancro e suas famílias. A promoção de mais investigação em oncologia pediátrica é uma das preocupações a que mais recentemente se dedica. O que a Acreditar faz há 26 anos - minimizar o impacto da doença oncológica na criança e na sua família - é ainda mais premente agora em tempos de crise pandémica.
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