Quando chegamos a uma cidade, reparamos no relevo, no recorte da costa, nas casas, nas cores, nas ruas, nas pessoas, nas lojas, nos barcos a balançar. Se essa cidade for o Mindelo, na Ilha de São Vicente, em Cabo Verde, onde estive na semana passada, reparamos também na ilha de Santo Antão, ao fundo, como uma onda gigante que nunca se aproxima. Tudo isso faz parte da paisagem que vemos com os olhos. Já quem gosta de saber mais sobre línguas precisa de apurar também o ouvido.
Se for um alemão a aterrar na cidade, andará pelas ruas sem encontrar nada de estranho. Está tudo escrito numa língua estrangeira, que talvez identifique como latina. Todos falam uma língua estrangeira, com umas quantas palavras de origem latina. De uma forma ou de outra, pouco percebe. Tudo normal.
Já um português desprevenido vê o português escrito em todo o lado e lembra-se de ouvir Cabo Verde referido na lista de países de língua portuguesa. Talvez fique então surpreendido ao compreender muito pouco do que as pessoas conversam entre si. Lá aparecem umas palavras bem portuguesas, mas as frases são difíceis de perceber.
Se se puser a conversar com cabo-verdianos, o nosso português curioso percebe que sabem falar português, com mais ou menos sotaque cabo-verdiano. Os portugueses sentem-se como ingleses em zonas turísticas ou madrilenos numa aldeia galega: todos sabem falar connosco, mas nós não percebemos as conversas em que não participamos.
Haverá portugueses que ficam irritados com a situação, tal como há madrilenos muito aborrecidos por ouvir galegos a falar galego e um ou outro inglês que considera aborrecido que nem todos os povos conversem na sua língua. Ora, é preciso uma forma muito particular de arrogância para exigir que os outros — que até aprendem a nossa língua! — não falem entre si na sua língua materna só para lhes percebermos as conversas. Se fazemos mesmo questão, podemos sempre aprender a língua deles…
O alemão e o português que imaginamos nas ruas do Mindelo não têm essa arrogância. Estão simplesmente curiosos com a cidade onde aterraram. O alemão, pouco interessado em línguas, decide explorar outras paisagens. O português, surpreendido com aquela língua de que percebe uma ou outra palavra, para logo a seguir ficar sem nada entender, quer saber mais sobre a paisagem linguística da cidade.
Para isso, façamos primeiro uma viagem à Suíça.
1. Quantos alemães se falam na Suíça?
Aterremos em Zurique. Se não soubermos alemão, ouvimos os transeuntes e identificamos tudo como alemão. As placas estão em alemão, os livros que se vendem nas livrarias estão, na sua maioria, em alemão — e os suíços falam alguma coisa que nos soa a alemão. Estamos como os alemães no Mindelo: tudo parece simples. A paisagem linguística resume-se a isto: alemão.
E, no entanto, se um berlinense aterrasse em Zurique sentiria algo muito parecido com o que sente o português no Mindelo (estou a falar de línguas; na pele, o berlinense sentirá muito mais frio, estou em crer).
Um alemão falará sem dificuldade com o suíço em alemão. Mas, se ouvisse dois suíços a falar entre si, pouco compreenderia. A televisão estaria em alemão, mas dois jornalistas a conversar num café falariam outra coisa.
Essa outra coisa é o Schwyzerdütsch, o suíço-alemão, um nome dado a todos os dialectos suíços de uma língua que muitos linguistas chamam alemânico. Há quem chame o suíço-alemão um dialecto do alemão, mas não é bem assim. A situação é mais complexa.
Nas zonas onde o alemão é oficial, há um continuum dialectal, uma transição mais ou menos suave entre formas de falar. Num desenvolvimento com base em usos de várias zonas, construiu-se um padrão escrito, uma construção artificial (como todos os padrões), que ninguém usa de forma exacta na oralidade.
Com o tempo, os alemães e os austríacos, ao aprender o padrão na escola, foram aproximando a sua língua desse padrão e, hoje, a diversidade dialectal está mais apagada (sem nunca ter desaparecido). Na Suíça, não acontece isso: o Schwyzerdütsch continua a falar-se, nos seus vários dialectos, em paralelo com o uso do alemão-padrão na escrita e nas situações formais.
Se quisermos, o Schwyzerdütsch é a norma da oralidade informal e o alemão-padrão é a norma da escrita. Os pais falam com os filhos em suíço-alemão e esperam que aprendam a falá-lo, tal como também esperam que aprendam, mais tarde, a falar alemão-padrão para uso na escrita e noutras situações.
Para complicar ainda mais a situação, o próprio alemão-padrão tem particularidades na Suíça. Ortograficamente, por exemplo, os suíços não usam o eszett (ß) — e há vocabulário que é diferente. O alemão é uma língua pluricêntrica: contam-se três padrões (alemão, suíço e austríaco), muito próximos entre si.
Os suíços da zona de língua alemã têm uma língua para a rua e para casa e outra para as aulas e para a televisão. Estamos perante uma situação de diglossia, um termo usado pelos linguistas para descrever os territórios onde convivem duas línguas, com usos sociais distintos. Normalmente, há uma língua de prestígio, usada na escrita e nas situações formais, e outra língua popular, usada nas conversas, em casa, e transmitida aos filhos naturalmente. A língua de prestígio é ensinada, depois, na escola.
Todas as línguas têm registos formais e informais. O que diferencia os territórios diglóssicos é que há uma língua para os registos formais e outra para os registos informais.
O alemão-suíço poderia perfeitamente ser padronizado, ensinado nas escolas, usado em todas as situações. Só que não é.
Os luxemburgueses decidiram ir por um caminho diferente: codificaram a sua própria variedade germânica, o luxemburguês, que passou a ser uma das três línguas do país (o alemão, o francês e, agora, o luxemburguês). Não deitaram fora o alemão-padrão, apenas acrescentaram a sua própria língua ao que se ensina na escola e se usa oficialmente.
2. Uma língua antiga em muitas ilhas
Os cabo-verdianos estão numa situação parecida com a Suíça e estão a trabalhar para se aproximarem da situação luxemburguesa.
O português é usado nas situações formais e serve ainda para comunicar com outros falantes de português. É ensinado nas escolas e há muitos cabo-verdianos (não todos) que acabam por falá-lo e escrevê-lo tão bem como qualquer falante nativo de português. Aliás, há grandes escritores cabo-verdianos da nossa língua.
Por outro lado, em casa e na rua, o cabo-verdiano é a língua de praticamente toda a população e, tal como acontece com o alemão-suíço, apresenta uma grande variedade interna.
Ao contrário da situação suíça, o cabo-verdiano não surge do mesmo continuum dialectal da língua oficial (neste caso, o português). O cabo-verdiano é uma língua crioula, que apareceu numa situação muito particular, em que escravos de várias origens e os seus traficantes encontraram formas de comunicar imperfeitas, chamadas pidjins, que depois se transformaram em línguas completas ao serem transmitidas a novas gerações, que criaram os crioulos.
Os crioulos são extraordinários por apresentarem uma regularidade gramatical muito acentuada. Uma geração vê-se privada da transmissão de uma língua completa e cria uma gramática inteira — e cria-a numa forma tão estável e expressiva como qualquer outra língua. Mesmo nas situações mais desesperadas, os seres humanos precisam de conversar, nem que seja à força de inventar um idioma.
No caso do cabo-verdiano, a criação da língua ocorreu há bastante tempo: o cabo-verdiano tem séculos de história e há linguistas que encontram a sua influência noutras línguas, como o papiamento, uma língua oficial em várias ilhas das Caraíbas.
Para se tornar em língua oficial de Cabo Verde, a par do português, o cabo-verdiano precisa de ser padronizado. Tem havido vários passos nesse sentido. A maior dificuldade é, como acontece em muitos outros casos de padronizações recentes, a diversidade interna da língua. Mas não nos enganemos: todas as línguas são diversas por baixo do padrão.
Há várias estratégias de criação de um padrão de língua. A minha viagem à ilha serviu, aliás, para dar duas palestras sobre a diversidade da nossa língua e ainda sobre as várias estratégias que as línguas ibéricas encontraram para se padronizarem. O basco, por exemplo, também partiu de uma diversidade interna muito marcada e, mesmo assim, conseguiu criar um padrão que foi aceite pela sociedade e aplicado no ensino.
Os cabo-verdianos terão agora de encontrar uma estratégia para a sua própria língua. O certo é que, para quem gosta de saber mais sobre a linguagem humana, o cabo-verdiano é uma língua muito interessante: é o crioulo vivo mais antigo que se conhece.
3. De volta ao aconchego: o valor da língua materna
Voemos até Portugal. A situação suíça, a situação luxemburguesa, a situação cabo-verdiana parecem-nos estranhas — mas a verdade é que muitas línguas passaram por situações paralelas. Até o português!
A nossa língua, antes de se chamar português e ter um padrão, já existia enquanto língua falada. O latim era a língua formal (numa época em que poucos escreviam) e a linguagem era a língua da rua e de casa. Com o tempo, essa linguagem ganhou o nome de português e tornou-se oficial e língua da escrita. Note-se que o português continuou a ser uma língua exclusivamente oral para a maioria dos falantes até ao século XX; aliás, em Cabo Verde, hoje, há uma percentagem da população a escrever português muito superior à percentagem de portugueses que escreviam em português no início do século XX.
Hoje, a maioria da população de um grande número de países sabe ler e escrever. É normal que o queira fazer no seu próprio idioma. Todos gostamos de ver a nossa língua materna com honras literárias e oficiais.
Muitas sociedades têm de conjugar a natural vontade dos povos de dar honras de Estado à sua língua com a necessidade de permitir a comunicação com outros povos. Em geral, tal implica oficializar a língua materna, sem deitar fora a outra língua (ou as outras línguas).
Foi o que fez a Irlanda, que tornou o irlandês oficial, mantendo o inglês como língua segunda (com a particularidade de, hoje, o inglês ser a língua materna da maioria da população).
Foi o que fez o Luxemburgo, mantendo o francês e o alemão no sistema de ensino, a par do Luxemburguês (no final, todos falam as três línguas).
Foi o que fizeram as várias regiões de Espanha que têm outra língua para lá do castelhano.
Foi o que fez Malta, que oficializou o maltês, língua semítica com muito léxico italiano, não abandonando o inglês.
Já os suíços não sentiram necessidade de oficializar o suíço-alemão, mas protegem-no com unhas e dentes. É falado por todos os suíços da área alemã e ninguém tem vergonha da sua língua, mesmo que não a ensinem nem aprendam na escola.
Em todos os casos acima, em que uma população decide oficializar a língua materna, a outra língua manteve-se forte e importante — e será provavelmente o que irá acontecer em Cabo Verde, mesmo depois de o cabo-verdiano se tornar oficial. As línguas maternas têm valor para os seus falantes por serem a língua materna, em que conversam e vivem diariamente; as outras línguas têm valor por permitirem comunicar com outros povos.
Os cabo-verdianos mantiveram o português como língua oficial e não parecem dispostos a abandoná-lo — querem, isso sim, usar a sua própria língua não só na oralidade, mas também na escrita. Julgo que nós, que tantas loas cantamos à nossa própria língua materna, conseguimos compreendê-los perfeitamente.
Os seres humanos sempre viveram em várias línguas. Os monolingues são a minoria. Se virmos bem, os falantes de línguas maternas com um baixo número de falantes costumam saber mais línguas do que os falantes de línguas maternas muito faladas (a começar pelo inglês). No futuro, os cabo-verdianos saberão falar mais línguas que um inglês típico.
Aliás, no futuro, não: hoje já acontece isso mesmo. Os cabo-verdianos falam cabo-verdiano, falam e escrevem português e ainda aprendem inglês na escola — é esta a intrigante paisagem que encontramos quando aterramos na linda (e quente) cidade do Mindelo.
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é História do Português desde o Big Bang.
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