Em tempos, desconfiei do Dia da Mulher – não do que significa, nem do que advoga, nem mesmo do que celebra, mas da condescendência com que tantas vezes nos é sugerido. Já tive o mesmo problema com o feminismo, não tanto pela guerrilha em que alguns querem torná-lo, mas pela complacência com que outros lhe cedem (como se fosse uma matéria de cedências). E é por isso que, para irritação de muita gente – tanto os que concordam comigo, como os que discordam, como os que não me entendem – assumi no passado que a palavra “feminismo” pouco me serve, já que a igualdade de direitos entre mulheres e homens devia ser uma questão de civismo, não de ideologia. Ou seja, para mim isto resumia-se a cívicos e a grunhos, a facção normal e a facção Neandertal.

Talvez tudo fosse implicação semântica. E hoje não só me apetece ser feminista (com toda a normalidade a que isso me obriga), como quero celebrar o Dia da Mulher duma forma muito particularizada.

Deixem-me antes confessar que poucas coisas me dão mais prazer do que tecer elogios. Escrever abonatoriamente sobre pessoas que merecem: que prazer! Tenho consciência de que maldizer é um exercício de estilo, e de leitura, com maior interesse; até admito que alguns dos meus cronistas preferidos são trauliteiros profissionais. Acrescento mesmo: a panóplia de recursos linguísticos é muito mais rica (e mais credível) quando queremos espetar baionetas do que quando queremos fazer cafunés. Apesar disto, para mim não há maior entusiasmo do que poder assumir entusiasmos, escrever enlevado sobre pessoas que nos elevam. É por aqui que estou excitado com o Dia da Mulher, pois este é o pretexto ideal para celebrar mulheres, mulheres específicas. Ao escolher algumas, celebro todas, celebro o género que conta com estas notáveis nas suas fileiras. (vá, não me crucifiquem pela leveza com que falei em género, se faz favor)

O Dia da Mulher vai então legitimar-me para fazer o que já faço muitas vezes neste espaço: dizer bem de quem merece. Admito que posso estar a ignorar contextos históricos desta comemoração do 8 de Março, mas não o entendam como uma banalização. O que pretendo contraria mesmo a banalização: o objectivo é estender a simbologia da data a todas as datas que nos apetecer. Dia da Mulher pode usurpar a máxima natalícia e ser quando quisermos - e é bom que queiramos muitas vezes; é forçoso. Eu, que não tenho qualquer legitimidade para empoderar mulheres, tenho necessidade de elogiar as poderosas, as talentosas, as distintas, as que deviam mandar nisto tudo. Hoje escolho estas 3:

Vera Marmelo

Os aplausos da imprensa ao trabalho da Vera não são propriamente escassos, e eu não estou a saudar uma artista ignorada, ou pouco representada. No entanto, a singeleza com que há mais duma década a Vera anda a fotografar músicos exige qualquer coisa maior que aplausos, ou reconhecimento, ou representação. A Vera merece um lugar na nossa História, mas daqueles que são escritos no imediato e em vida – ela é a melhor documentarista dum tempo específico em Portugal; é a retratista dum determinado início de século que não há meio de conter.

A subtileza e discrição da Vera puseram-na na linha da frente para registar um paradigma musical recente. Só que (e isto é extraordinário) esse paradigma musical também se consolida em torno da discreta e subtil senhora da câmara fotográfica. É como se lá não estivesse, mas as coisas só existem porque ela lá está. Deixa de ser mera testemunha do que tem andado a acontecer - a Vera fez acontecer com os seus testemunhos.

Num país sem grandes artistas plásticos do Impressionismo, eis que brotou uma fotógrafa para quem o instante é muito mais do que uma impressão. A menina Marmelo tem o melhor dos instintos para captar momentos como se fossem sinédoques, milésimos de segundo despercebidos que transcendem uma vida de poses e atitudes. A lente da Vera lembra-nos sempre a coincidência do seu nome: vera por vocação, a conferir-nos verdade com o seu jogo de obturadores e diafragmas.

Esqueçam as antigas superstições ameríndias de que as fotografias nos roubam a alma -  o trabalho da Vera, mesmo que cristalizado no instante mais banal, é de plena devolução. É como um sopro.

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Inês Lopes Gonçalves

Muito se tem elogiado Filomena Cautela no último ano e, a meu ver, com uma boa dose de justiça. Há um desentorpecimento, um jeito despachado na maneira como ela conduz os programas que apresenta – e é essa qualidade que a livra de chamuscar-se com as banalidades e boçalidades a que os formatos (e os horários) muitas vezes a submetem. A Filomena não paira sobre as situações; não se trata de leveza, é mais a resolução em seguir em frente. É um Bear Grylls lançado em florestas de directos televisivos difíceis, ou em pântanos de engraçadismos embaraçosos; sobrevive, escapa e consegue fazer boa figura.

Quem não se tem elogiado o suficiente é uma habitual parceira da Filomena, de seu nome Inês Lopes Gonçalves. Compreendo que a posição de sidekick (estou a usar o termo técnico, e não qualquer outro tipo de subalternidade) de talk-show, torne a Inês num alvo menos visível para louvores generalizados. Ora, é isso que me apetece contrariar, e não por capricho, mas exactamente por reconhecer nesta mulher características que deviam colocá-la em destaque nos media nacionais.

A Inês Lopes Gonçalves é possuidora duma inteligência notável e dum sentido de humor que só rivaliza com o seu senso de oportunidade. Quem tiver dúvidas, ou quem estiver escaldado por ocasionais grosserias do “5 para a Meia-Noite”, que experimente espreitar o “Traz prá Frente” na RTP Memória, onde a Inês acumula funções de apresentadora e moderadora. Sou suspeito, já que refiro um dos meus programas preferidos da televisão, e com uma das temáticas que me é mais cara. Mas, sem sombra de dúvida, a minha predilecção pelo “Traz prá Frente” está intimamente ligada ao tipo de condução que a Inês faz do programa, condução que defino com a seguinte palavra: perfeita.

Não pretendo reduzir esta apresentadora-radialista-jornalista-cantora às balizas dos programas por onde passa. Mas todos eles, quer na tv quer na rádio, são veículos para percebermos a Inês como integrante duma espécie rara, quase extinta, de comunicadores. Não é amorfa nem desnecessariamente exuberante, não malbarata a inteligência nem destrunfa o humor, não amesquinha os interlocutores, não se coíbe do risco nem tampouco nele se vicia. Sabe rir de si própria mas não está atolada na areia movediça clichê da auto-depreciação. Manuseia trivialidades sem se banalizar e tem respeito pela memória. Neste sentido, a Inês insere-se na velha linhagem dos profissionais de televisão – aqueles que sendo e apelando à pessoa comum, eram maiores que a vida – mas numa versão revista e actualizada para os nossos dias, uma versão nivelada por cima. É, portanto, mais do que uma mulher do seu tempo, uma mulher para o seu tempo; uma mulher cheia de recursos em tempos sequiosos de gente com recursos.

Manuela Azevedo

Não consigo estar com meias-medidas quando se trata da Manuela Azevedo. A afirmação que vou fazer é algo que já muita gente suspeita, pelo menos todos os que ouviram a Manuela a cantar na rádio ou em discos. É algo de que muita gente tem a certeza, pelo menos os que já viram a Manuela actuar ao vivo. Afirmo então: a Manuela Azevedo é a pessoa mais talentosa a pisar os palcos portugueses. Reparem que uso “pessoa” e não a restrinjo ao seu sexo; reparem ainda que uso “palcos” e não limito a minha apreciação às lides musicais. Estive quase até para não escrever “portugueses”.

Restam-me poucas palavras depois da peremptoridade com que classifiquei a vocalista dos Clã, mas ainda assim embrenho-me em mais umas quantas considerações. O facto da Manuela não ser, neste momento, a grande figura de proa musical da nação podia deixar-me lamentoso, mas não deixa. Nem sempre o que mais singra, o que é mais procurado, ou aquilo com que as pessoas mais se identificam, corresponde a talento puro, e a Manuela não consegue oferecer menos do que talento puro. Pode ser desanimador que o país não ande a reboque dos seus melhores, mas não deixa de ser animador que desse mesmo país brote tanta qualidade, brotem melhores que são tão melhores.

Dir-me-ão que a Manuela Azevedo até é bastante reconhecida e reverenciada, e eu responderei que esse bastante jamais bastará. Felizmente, a sua tarimba inspirou muita gente, e o legado de excelência – mesmo em arte tão corriqueira como é isto das canções – nunca poderá ser apagado ou revisionado. E a isso ainda se acrescentam as deliciosas incongruências de personalidade: a mais humilde quando era legítimo ser a maior diva, a mais pacata quando em palco ninguém lhe chega aos calcanhares, a mais generosa quando tanto já nos deu. Não precisamos de teorias para alegar que as mulheres são iguais aos homens quando, através da Manuela, temos casos cabais onde elas são tão superiores.