Isto é curioso. Há um par de semanas, acolhemos as cartas infantis ao Pai Natal com aquele misto de bonacheirice e paternalismo - a perpetuar por um lado, a ignorar por outro, tão inocente mentirinha. Poucos dias volvidos, estão os adultos a fazer votos para o Ano Novo, convencidos duma generosidade benfazeja que, no fundo, também redunda em mentirinha inocente. Acontece que desejos genéricos de “saúde e prosperidade” não são generosos, porque dependem duma execução mágica, não dum comprometimento, nem duma vontade efectiva que compele à acção. Quer provenham do coração ou da boca, estes desejos continuam a não ser generosos, pois raramente passam pelas mãos, pelos pés, pelos bolsos. São duma simpatia louvável, dum civismo protocolar, dum altruísmo teórico, mas não constituem generosidade.

Talvez me esteja a esquecer de votos mais oficiais. Enquanto que a nós (vulgares civis) falta algum poder pragmático, nas mensagens de Ano Novo dos governantes a coisa poderia mudar de figura; votos de saúde e prosperidade, afinal de contas, deviam soar mais efectivos quando partem de quem tem mão efectiva na nossa Saúde e na nossa prosperidade. Mas, aqui confesso: a minha incredulidade é tão veemente que roça mesmo o lugar-comum. Nem é que eu desconfie de toda e qualquer intenção de quem nos governa, nem que suspeite sempre de motivos ocultos por detrás dos votos de Ano Novo, mas mantenho uma incredulidade latente, corriqueira, como se proviesse de conversas de barbeiro. Os governos são rápidos e repetitivos na auto-felicitação, omissos e usurpadores na partilha dos créditos das coisas boas, e ausentes no reconhecimento do erro. O presente Governo então, parece-me campeão deste tipo de propagandismo, e demasiado cauteloso para sugerir cautelas. Quando assim é, qualquer benfazeja declaração de intenções no Ano Novo, mesmo se insuspeita, torna-se descartável.

Aproveito para clarificar que, para além de pessimista, também sou céptico. Não é bem a mesma coisa. Se me disserem que “vai tudo correr bem em 2019”, duvido, porque sou pessimista. Se me disserem que “vai tudo correr bem em 2019, basta ter pensamento positivo”, volto a duvidar, mas aqui dá-me um ataque de cepticismo tão forte que fico acamado. Não é que ache o “pensamento positivo” totalmente ineficaz, nem sequer lhe atiro o mesmo descrédito que dou a retribuições cósmicas, zodíacos ou fantasminhas brincalhões. O “pensamento positivo”, desde que saia do campo do mero desejo e passe à acção, é um factor motivador e inspirador, e repercute-se em alterações mais ou menos visíveis do nosso quotidiano. Só que, entretanto, os mantras da positividade começam a assumir-se como uma espécie de super-poder parapsicológico, e aí tiro o meu cavalinho da chuva molha-tolos.

Sou incapaz de prever um mundo melhor em 2019, e a derradeira razão desse pessimismo não me é intrínseca, está no mundo: ele tem dificuldades sérias em ser melhor. Avisei logo no primeiro parágrafo que não iam gostar de ler isto. Sucede que vejo a felicidade global como aquele cobertor curto: se se puxa para um lado, destapa o outro; se cobre os pés, desprotege a cabeça. Há interesses e bem-estares conflituosos entre si, bênçãos que só bafejam uma facção quando pulverizam a outra de maldições. A harmonia entre povos, entre espécies, entre tudo, é tão utópica, que a única solução viável para um mundo efectivamente melhor é aquela que faz lembrar os vilões megalómanos do James Bond: arrasar com isto tudo, começar de novo; a solução diluviana.

Às vezes desleixamo-nos e posicionamos ideais entre a redacção de escola primária e a resposta clássica de Miss Universo. Queremos acabar com todas as guerras num princípio pacifista absoluto. Absoluto e absurdo – pois se é verdade que provavelmente ainda vai ser uma guerra a acabar com isto tudo, também é verdade que se não fossem certas guerras provavelmente isto tudo já tinha acabado. Queremos acabar com os mártires e acabar com regimes autoritários, como se essa solução não fosse mutuamente exclusiva. Queremos liberdade plenária, mas somos obstinados a discutir os seus limites, ou a defender o direito de quem escolhe para si a escravidão (desde que sejam pobrezinhos com raízes longínquas). Queremos que o Brasil fique tão devastado que Bolsonaro tenha de cair e, aparentemente, queremo-lo por bem. Queremos ignorar que haverá sempre males necessários num mundo caído.

Assumo-me pessimista, mas não desesperado. E, com toda a sinceridade, a impossibilidade de tornarmos o mundo muito melhor não é um convite à desistência nem à inacção, bem pelo contrário. É por sabermos que o mundo nunca será bom que temos de arregaçar as mangas, que temos de redobrar os esforços para mantê-lo habitável. Apesar desse derrotismo quanto aos rumos globais, acredito na capacidade individual de sermos melhores, e isto só funcionará quando deixar de ser um objectivo anual, e passar a ser um princípio.

Por simpatia, continuemos a fazer votos. Por generosidade, façamos depois qualquer coisa mais. Desejo a todos um bom ano, e não estou a ser contraditório.

Sítios certos, lugares certos e o resto

Ouro, Incenso e Birra

Mr. Five Per Cent

Da vil mentira