Começo a escrever estas linhas no dia em que faz um ano que surgiu o primeiro caso de Covid-19 em Portugal, 2 de março de 2020. Durante o mês de fevereiro ainda achava que seria epidemia de pouca dura. Lembro-me de ter ido à SEDES, no dia 10 de fevereiro, com Ricardo Mexia, para falar sobre a epidemia, e, nessa altura, os números de Wuhan já estarem a baixar de um pico de 4000 novos casos uns dias antes para 2218 na véspera. Era um fenómeno exclusivamente chinês, dizia eu, e o Ricardo Mexia não discordava. Não havia números, não havia evidência de pandemia.

Como eu estava enganado.

Mantive o meu otimismo até ao dia 12 de março, uma quinta-feira, em que muitas escolas já não abriram. Nessa manhã, numa reunião na Ordem dos Médicos, ouvi Adalberto Campos Fernandes a emitir um alerta para a gravidade extrema da situação. Voltei logo para o escritório e disse: “vamos todos para casa”. Em uma hora estavam dossiers carregados, computadores desmontados e um aviso na porta a dizer que tínhamos ido para casa. E cá nos mantivemos, vai fazer também um ano, mais disciplinados, mais organizados, tudo na cloud. Cada um arranjou a sua forma de trabalhar, vamos às compras quando melhor nos convém, mas o trabalho aparece feito, e isso é que conta. Poder-se trabalhar a partir de casa é uma sorte que, infelizmente, nem todos têm.

Quando tudo isto começou, fiquei cheio de esperança. Tudo isto iria mudar. Uma oportunidade que só aparece em décadas, quando a necessidade absoluta é mãe da adaptação a novas circunstâncias, quando a escolha entre a vida e a morte não permite hesitações, quando agir bem e depressa faz toda a diferença. Passado um ano, vejo que algumas oportunidades foram aproveitadas, outras esquecidas, mas, para as mais importantes, faltou uma cultura de ação e capacidade de previsão das ações e das consequências das omissões.

O que correu bem. Começámos bem. Quem ditou o confinamento de março fomos nós todos quando, civicamente, o povo recolheu às suas casas. Quem precisava de trabalhar presencialmente, continuou, com coragem e abnegação. O Governo deu instruções claras e precisas nessa altura; guardo a mensagem do ministro Pedro Siza Vieira, que me esclarecia uma dúvida sobre o decreto do estado de emergência no mesmo dia em que foi publicado, a 18 de março. “É para trabalhar!”, afirmava categoricamente. O SNS fez milagres, em condições muito adversas. Enfermeiros, médicos, pessoal auxiliar saíram das suas casas para que as suas famílias não corressem risco de infeção. Muitas empresas reconverteram a produção para começar a disponibilizar, em poucos dias, o álcool-gel e o equipamento de proteção pessoal que tanta falta fazia. Em coordenação com o Infarmed, os bombeiros e empresas de transporte distribuíram, do Minho ao Algarve, centenas de toneladas de álcool-gel, assegurando o abastecimento logo a partir do fim de março a todos os hospitais do SNS, à PSP, à GNR, às Forças Armadas, aos serviços prisionais, aos CTT e a muitas autarquias. O Governo respondeu com decretos-lei de emergência, incluindo moratórias sobre a certificação de produtos para as empresas que ainda não as tinham, dando-lhes seis meses para cumprir com os regulamentos vigentes. Foram medidas importantes que não passaram para a comunicação social e que são de toda a justiça aqui divulgar.

Por razões que ainda não percebemos bem, tivemos a primeira vaga de Covid-19 mais suave de toda a Europa. Teria sido por termos começado mais cedo a confinar, em termos relativos ao progresso do contágio, do que os outros países? Teria sido por causa da vacina BCG, obrigatória em Portugal, mas entretanto descontinuada noutros países, que nos teria dado uma maior imunidade? Ainda não sabemos, mas uma coisa é certa, não foi nem milagre nem sorte, conceitos que o SARS-CoV-2 desconhece. Um dia os epidemiologistas revelarão a verdadeira causa, pois só a Ciência o poderá fazer.

E foi da Ciência que começaram a aparecer boas notícias. Cientistas chineses conseguiram descodificar o genoma do vírus logo em janeiro; e publicaram-no. Na Alemanha, a BioNtech, partindo dessa informação, começou imediatamente a produzir as primeiras amostras de vacinas do tipo mRNA, uma tecnologia que permite usar informação genética do vírus para estimular o nosso sistema imunitário a produzir anticorpos contra ele. Embora esta tecnologia já fosse conhecida há décadas, tinha um importante obstáculo: nunca tinha sido aprovada pelas autoridades de saúde que a consideravam com apreensão… porque nunca tinha sido ensaiada! Trata-se de um problema recorrente na indústria farmacêutica, que muitas vezes rejeita opções tecnológicas inovadoras devido ao seu risco regulamentar, ficando-se pelo que já é bem conhecido das autoridades de saúde.

Aqui aconteceu a mais importante decisão política da pandemia, uma decisão que terá consequências duradouras para a nossa saúde. A 15 de maio de 2020 é anunciada a operação Warp Speed, uma iniciativa sem precedentes do presidente Donald Trump, que criava condições financeiras, mas sobretudo legais, para que a agência americana do medicamento, a FDA, pudesse aprovar vacinas contra a covid-19 em prazos nunca vistos. A Agência Europeia do Medicamento seguiu o mesmo exemplo e em dezembro de 2020 duas vacinas já tinham sido aprovadas.

Foram estas as boas notícias. Vejamos o que correu mal.

A Tragédia. Até ao fim do ano 2020 tinham morrido de Covid-19, em Portugal, 6.906 pessoas. A 6 de fevereiro de 2021 chegámos às 13.954 mortes. Ou seja, nos primeiros 37 dias de 2021 morreram tantas pessoas como em todo o 2020! Em 37 dias duplicámos as vítimas de Covid-19! Em 37 dias morreram o dobro das pessoas que habitualmente morrem “de frio” e de gripe todos os anos. E ninguém disse isto! Nem o Governo, nem a oposição, nem a Direção-Geral da Saúde, nem os meios de comunicação social.

Procurei consultar informações oficiais, que são atualizadas diariamente, sobre a mortalidade total, por todas as causas, nesses 37 dias em comparação com a média de óbitos em igual período nos dez anos anteriores: foi superior em 67%. Um valor suficientemente elevado para ter impacto negativo no apuramento da vida média dos Portugueses no final deste ano.

Embora a abertura do Natal seja apontada como a causa desta tragédia, o que reparte a responsabilidade por todos, a situação é muito mais complexa, conforme a ministra da Saúde reconheceu quando revelou que o índice de transmissibilidade tinha baixado logo nos primeiros dias de janeiro, para depois crescer fortemente. Era aí que devíamos ter atuado imediatamente. Podíamos ter seguido o exemplo da heroína desta pandemia, Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia, que nunca hesitou um segundo em confinar. Este país, uma ilha, é certo, acumula hoje 26 vítimas mortais do vírus, entre uma população com 5 milhões de habitantes – metade de Portugal. Comparando igual com igual, em termos populacionais, a Nova Zelândia teve 315 vezes menos óbitos do que nós.

As vacinas. Se as aprovações vieram com enorme rapidez, o mesmo brilharete não pode ser dito da velocidade de vacinação, já que a capacidade de produção tem sido muito aquém daquilo que se previa em dezembro. Estamos neste momento a vacinar na União Europeia a metade do ritmo previsto. A esta velocidade, só Malta espera ter 70% da sua população vacinada ainda este ano. Todos os outros Estados-membros só conseguirão este objetivo em 2022, e os mais populosos, como Alemanha, só em 2023. Isto sem falar do resto do mundo. Sem aumentarmos a capacidade de produção de vacinas, estima-se em cinco a sete anos o prazo para se vacinar toda a população do planeta. Claramente são precisas outras soluções, já que, numa pandemia, um português é igual a um angolano ou a um filipino. Mesmo com as viagens fortemente condicionadas, o SARS-CoV-2 já mostrou que consegue replicar-se a grande velocidade, galgando fronteiras.

No entanto, acredito que a produção aumentará fortemente nos próximos meses, pois os laboratórios detentores das vacinas tudo farão para contratar outros produtores. O processo de transferência de tecnologia é muito moroso e, em muitos casos, vai ser necessário reconverter instalações industriais, o que demora vários meses. Mas vai acontecer.

E depois do Covid-19? Trump abriu a caixa de Pandora. Nunca mais medicamentos inovadores demorarão 5 a 10 anos a ser desenvolvidos e aprovados. Se foi possível inventar, produzir, testar e aprovar vacinas em poucos meses – em condições de emergência, é certo – existe agora a convicção, tanto nas autoridades de saúde como na indústria farmacêutica, de que temos a obrigação de rever este modelo de desenvolvimento e de aprovação de novos fármacos, que em 60 anos nunca foi alterado a não ser para receber mais camadas de complexidade e de custo. Temos de reduzir - no caso de medicamentos “normais”, não-pandémicos - esses prazos para metade, desde que o novo modelo proporcione as mesmas garantias de eficácia e segurança que o antigo. Haverá uma vantagem adicional: é que ao diminuir o custo e duração dos ensaios clínicos, desaparecerá a grande justificação para os preços elevados de alguns medicamentos. Estou confiante de que vamos passar a ter novos medicamentos mais baratos e muito mais rapidamente.

Na União Europeia, onde a saúde é assunto reservado dos Estados-membros, vão acontecer grandes mudanças, pois só de forma coordenada se pode combater uma pandemia. Em setembro, defendi que tínhamos de ter uma NATO para a saúde, um tratado de assistência mútua que determine que um ataque pandémico a um membro é um ataque a toda a União. Em janeiro deste ano, a Comissão anunciou a formação da Autoridade para dar resposta e prontidão em emergências sanitárias (HERA), um organismo que é um primeiro passo nesse sentido e “um elemento central para fortalecer a União de Saúde Europeia [ora aqui está um conceito novo] com melhor prontidão e resposta a sérias ameaças de saúde transfronteiriças, permitindo a rápida disponibilização, acesso e distribuição de medidas de combate”. Isto é bruxelense para a Saúde passar a ser, também, uma competência da União, pelo menos na questão de emergências de saúde, o que trará muitas vantagens.

Uma consequência será a criação na Europa de centros de armazenamento de medicamentos, vacinas e equipamento de proteção individual. Não mais voltaremos a proibições infantis e erradas sobre o uso de máscaras, quando a verdadeira razão era que elas não estavam disponíveis na Europa e era necessário guardá-las para quem mais precisava, os profissionais de saúde. Seguiremos o exemplo do Japão, que tem, há muitos anos, uma reserva estratégica de medicamentos para a gripe entre outros fármacos. Mas, acima de tudo, passaremos a ter políticas amigas da indústria farmacêutica, que sempre preferimos ver como um setor a espremer do que a indústria que salva vidas. As políticas de preços baixos levaram as farmacêuticas a desindustrializar e a transferir para a China e para a Índia a capacidade de produção de princípios ativos. Poucos o sabem, mas mais de 80% de todos os medicamentos à venda na Europa e nos Estados Unidos são fabricados com princípios ativos produzidos nesses dois países, o que é uma grave ameaça para a nossa segurança nacional e para a segurança da União em caso de guerra ou conflito comercial.

Em termos de vacinas e de medicamentos, nada será como dantes. As vacinas são os melhores medicamentos de todos – uma só toma para não adoecermos, ao contrário dos medicamentos curativos ou para o alívio de sintomas, que são tomados quando já estamos doentes e durante o tempo que durar a doença. Mas mesmo assim, 135 anos depois de Pasteur ter vacinado e salvo um rapaz mordido por um cão raivoso, só existem vacinas no mundo para 29 doenças. As tecnologias de mRNA, que agora passaram para o domínio da aprovação pelas autoridades, vão conhecer um enorme avanço. Nos próximos anos poderemos ser vacinados contra as bactérias que provocam infeções pulmonares e pneumonias 15 dias antes de sermos hospitalizados para uma intervenção cirúrgica. Vamos assim combater uma importante causa de morte, as infeções hospitalares.

Na área do Covid-19, haverá um grande desenvolvimento, que já começou na área dos medicamentos terapêuticos. Como o vírus passará a ser endémico, também precisaremos de novos medicamentos, já que as taxas de vacinação provavelmente nunca serão suficientemente elevadas, sobretudo nos países menos desenvolvidos, para erradicar a doença. Teremos medicamentos disponíveis em farmácia, a tomar depois do aparecimento dos primeiros sintomas. Será por esta via também que controlaremos a Covid-19 e que iremos proteger o nosso sistema de saúde.

A comunicação foi uma das grandes vítimas da pandemia, em que governantes tinham de comunicar dados tão importantes quanto complexos a uma população sem os conhecimentos para os entender. “Não há evidência científica” passou a ser a desculpa para a inação, quando muitas medidas não precisavam de evidência científica, chegava o bom senso. Se a pandemia tem uma heroína, também tem um herói, Anthony Fauci. Ele foi o melhor comunicador, acalmando uma nação cujo presidente tinha aconselhado umas injeções de lixívia. Fauci dizia a verdade, dava conforto, esclarecia a questão das vacinas sem antagonizar o jornalista, sem arrogância, sem cinismo. Também Angela Merkel teve, no princípio da pandemia, discursos de grande elevação, de sentido de Estado e com essa qualidade rara no discurso político, compaixão sincera.

O meu maior desejo é um discurso político mais verdadeiro, mais amigo do cidadão, que o torne parte da solução. Portugal é um país fértil para esse diálogo, gente que reage com seriedade quando lhe falam como adultos. Temos comentadores que nos avançam com uma explicação da relação de forças entre Belém e S. Bento para psicanalisar esta ou aquela declaração, quando o que queremos é saber se vamos ou não ter emprego para a semana, se há pão na mesa, e, se não houver, o que todos temos de fazer para nos valermos uns aos outros. Queremos saber como vamos ser uma nação próspera, segura, saudável e quais são os planos e as direções que deveremos seguir para lá chegar. É tempo de aprendermos as nossas lições.

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