Antes de avançar, uma confissão: tinha em mente um belo e forte artigo sobre as relações entre Portugal e Espanha. Mas era um texto que ainda demorava a escrever e passar o dia de aniversário à frente do computador não é boa ideia. Portanto, falo do casamento. Para a semana falarei então de Portugal e Espanha (ou como às vezes mais vale não casar).

Comecemos, pois. As sete palavras.

1. BANALIDADE. Há línguas que separam o casamento enquanto cerimónia, do casamento enquanto vida a dois (pensem no inglês: «wedding» e «marriage»). Por cá, juntamos tudo: o casamento é a festa, mas também são os anos que se seguem. Ora, nesse dia de festa, as imagens que temos na cabeça são de uma tradição em forma de bolo de açúcar: é o noivo nervoso à espera, é os amigos a mandar piadas tolas, é a noiva a entrar, é o percurso em carros com fitas brancas hasteadas nas antenas, é a quinta toda iluminada, é o bater nos pratos, é a musiquinha sempre igual, é as partidas dos amigos, é a bebedeira... — há quem invente maneiras de mudar o guião, mas ele lá está. Ah, mas para quê descrever isto tudo, se há este vídeo?

2. FELICIDADE. A banalidade, pois, é o que vemos em todos os casamentos — desde que não seja o nosso próprio casamento ou dos nossos melhores amigos. É como se usássemos óculos diferentes: se for o nosso dia, então tudo é estranho e mágico e diferente do que alguma vez aconteceu. E a verdade é que todos os casamentos são mesmo diferentes — falo tanto do casamento-cerimónia como do casamento que se segue (e às vezes nem chega a seguir). No nosso caso, foi um casamento como nunca tinha visto (afinal, era o noivo): alguém a rapar as sobrancelhas, um carro cheio de amigos e muito fumo, dois rabos de burro virados para mim, um palhaço (mesmo daqueles vestidos de palhaço) a meter medo a todos, os meus amigos a transpirar por todos os lados, o sol a bater de chapa no branco do vestido, a noiva a pegar numa guitarra e a cantar para mim, dezenas de pessoas a chorar, o toque dos pratos e um beijo que não me pareceu nada banal, os amigos a choramingar e a rir ao mesmo tempo. Até o homem do piano me parecia melhor do que o costume, mesmo quando teve um ataque agudo de falta de noção e escolheu a canção perfeita para uma dança de casamento: «Não voltarei a ser fiel!». (Já agora, para quem viu o vídeo acima, no nosso casamento o Joaquim Monchique foi o meu pai, que não embalou o leitão, mas dançou com a respectiva cabeça. Coisas da vida.)

3. DATA. Uns tempos antes da data, telefonei à minha única bisavó viva para lhe dizer que me iria casar. Ela estranha: «Mas não és muito novo?». Esclareço que sou o mais velho, aquele que já tem 27 anos. «Tantos?! Casa-te, casa-te... Já é hora!» E a hora aproxima-se como uma contagem decrescente. A tensão, por vezes, faz os nervos estalar. Já sabemos: aquela data que se aproxima há-de ser depois motivo de comemoração todos os anos — se tudo correr bem. A data chega, lá dizemos a fórmula, lá assinamos o papel…

4. PAPEL. É um daqueles lugares-comuns: o casamento é só um papel. Mas também dizemos umas coisas e prometemos outras tantas. Há algumas coisas que são importantes e parecem meros rabiscos no papel. O nosso nome não passa dum rabisco no papel. Mas percebo o que querem dizer: um casal pode muito bem passar sem o papel e ter um dos casamentos mais sólidos de todos, mesmo que ninguém diga que estão casados. É bem verdade. Mas não deixa de ser bom ter este dia para dar um pequeno nó nos dias. Não deixa de ser bom marcar a fogo no papel aquilo que sentimos na pele.

5. MESAS. Saímos da cerimónia e vamos para o interminável almoço de cinco pratos e outros tantos, seguido de dança, mais comida e tudo o resto que não se conta (às vezes porque ninguém se lembra). Cada um sentar-se-á no lugar escolhido a dedo pelos noivos. Quem vê por fora vê que tudo é igual a todos os casamentos que passam pela mesma quinta, numa indústria apostada em debitar dias especiais iguais a todos os outros. Mas… Mas lá por dentro, o que temos são as complexas histórias de cada um, as histórias de cada com a pessoa do lado, as histórias de cada um com a pessoa que está a três mesas de distância e com quem já não fala há dois anos. Será que o X já não fala com Y? Será que Z quer voltar a falar com X? O X não andava atrás de Y? Assim, com variáveis matemáticas, parece dramalhão de telenovela. Com os nomes das nossas pessoas são histórias em que não conseguimos deixar de pensar. Há olhares, suspiros, meias palavras, conversas adiadas. Há piadas só daquelas pessoas, pequenas matreirices ou crueldades maiores. Há uma certa felicidade de gente parada, depois da dança, com os olhos a brilhar. São milhares de histórias — um só casamento, se houvesse alguém com talento para tal, dava para obras-primas da literatura ou do cinema. A banalidade está à superfície. Basta passar com a unha.

6. BEIJO. É como aquela imagem de uma taça que se transforma em dois rostos a olhar um para o outro: num segundo vemos a maior banalidade, no outro vivemos tudo como uma história irrepetível. Nesse beijo dos noivos, temos não só essa tradição inventada anteontem (bate nos pratos!), como o toque de carne com carne que o casamento tenta domesticar, sem o conseguir por inteiro. Há esse pulso fundo do sangue no corpo, a atração e o morder os lábios, essa bela profanidade que ali tentamos transformar em qualquer coisa de sagrado e que, de tanto tentar, deixamos escapar por vezes para a tal banalidade. Não importa. O beijo é um momento do ritual repetido no mesmo lugar todos os domingos de Verão — mas também é um beijo. E por trás desse beijo há palavras que só aquelas duas pessoas conhecem, há algo que é diferente de todos os outros, há o riso de piadas que nem precisam de palavras, há tudo o resto que não sei dizer. Há essa palavra que apenas digo entre parêntesis (amor), para não a sujar neste texto banal.

7. RISO. E no fim fica o riso, as fotografias — e há-de haver filhos e zangas e jantares e amuos e florestas negras que encontramos a meio do caminho. Entre quem se sentou nas tais mesas que escolhemos a dedo, uns vão-se afastando, alguns já morreram, outros aparecem para a festa já o casamento acabou há anos e uns quantos continuam sempre connosco, pela vida fora, a rir e a conversar como naquele dia. Curiosamente, duas das pessoas mais importantes daquele casamento em particular de que estou a falar ainda nem tinham nascido. E, pronto, mais de uma década depois, aqui estamos os dois, juntos.


Marco Neves é tradutor, professor e autor do livro Doze Segredos da Língua Portuguesa. Escreve no blogue Certas Palavras.