CHUVA. Nada contra a ideia de haver um sítio com muitas lojas. O comércio é coisa suja para algumas almas, mas não para mim. Faz parte e tem coisas boas (gosto de comprar livros, para começar). Mas o horror filosófico aos centros comerciais, em muitos casos, vai para lá do horror ao comércio. É também um certo pavor de ver pessoas. Enfim, não padeço desse mal. O problema é que tudo o que é bom — ou nem bom nem mau — quando é de mais enjoa, já lá dizia não sei quem. Ora, se queremos enjoo garantido de comércio e gente, a melhor solução é mesmo ir para um centro comercial num sábado de chuva, quando o Natal já se vê lá ao fundo. Tentei encontrar uma comparação para a concentração de seres humanos que por lá encontrámos, mas não existe: um centro comercial num sábado de chuva é mesmo o padrão inexcedível de excesso de gente.

ELEVADORES. Estamos de carrinho de bebé, impedidos de usar as tão práticas e arejadas escadas de ferro rolante. Chegamo-nos ao pé do elevador e carregamos no botão. Abre-se a porta do elevador e percebemos que vai cheio de gente bem aconchegada, num abraço colectivo que seria comovente, não fosse o cansaço. Passa outro elevador. Cheio, também. Carrinhos de bebé? Nenhum: é tudo gente que deve ter fobia às escadas rolantes. Ao quarto elevador cheio, começo a magicar formas de enfiar o carrinho nas escadas. Dizem que é proibido, mas se não sairmos dali, vamos ficar eternamente naquele piso do centro comercial. Ao sexto elevador a abarrotar, a minha timidez começa a dar lugar à vontade irrefreável de gritar: saiam daí, que está aqui um bebé! Faço o gesto com a boca de quem vai gritar isso mesmo, mas a porta fecha-se, escondendo as caras pouco envergonhadas dos usurpadores de elevadores. Ao sétimo, abre-se a porta e há um cantinho livre para encaixarmos o carrinho. Sorrio. Mas aí atravessa-se à nossa frente um casal de idosos, bem simpático, que aponta para o cartaz das tais prioridades. Sim, também têm direito a passar à frente... Enfim, conseguimos entrar ao fim de quinze elevadores. Se não foram tantos, pareceu.

MESAS. Pior do que os elevadores dos centros comerciais, só as mesas da zona dos restaurantes. Entre zombies de tabuleiro na mão, que percorrem sem parar a área em busca de uma cadeira vazia, e aquelas almas sem salvação que se sentam nas mesas, sem tabuleiro, a ler o telemóvel, enquanto alguém vai buscar a comida, uma família de quatro sente-se compelida a fugir. Mas há que comer, que a vida não é só elevadores e trocas de prendas. Com alguma coragem e paciência, encontramos um canto onde podemos apreciar aquele manjar dos deuses, que nem estava assim tão frio depois de trinta minutos de espera.

BIRRAS. O nosso cérebro começa a trabalhar em seco quando estamos num centro comercial. São as caras de meio país a passar por nós, são conversas ouvidas aos pedaços sem dó nem piedade, são as dezenas de montras construídas com esmero para atrair a atenção dos desatentos, são as músicas, os quiosques, a berraria sem fim. E com um filho de seis anos e outro de nove meses dentro dum carrinho de bebé? O cansaço dos pais e a excitação absurda dos filhos conjuga-se para um ambiente familiar um pouco mais azedo do que o costume. Há, depois, a transpiração empastelada do ar moído pelo ar condicionado. Há a roupa a cheirar a escada rolante. Há o carrinho do bebé entaramelado nas pernas da multidão ansiosa por comprar coisas em geral. Há as birras. Há a vontade de ir à casa-de-banho quando já só faltam duas pessoas na bicha do restaurante. Ah, a felicidade é estar num centro comercial e imaginar outro sítio qualquer!

ATALHO. A minha mulher não inventou a electricidade, mas teve uma ideia de génio. Quando já nos preparávamos psicologicamente para a Segunda Guerra dos Elevadores, ela sorriu! Espera lá! Se queremos elevadores desafogados, podemos ir àquelas lojas gigantescas, de vários andares, que costumam ter um elevador interno. Assim, entramos na loja no segundo andar, passamos as mãos pelas peças de roupa, entramos no elevador lá da loja, saímos no primeiro andar, passamos as mãos por outras peças de roupa e, já está!, saímos sem ter de esperar na bicha dos carrinhos de bebé. Alegrou-me o dia, foi o que foi!

JURAMENTO. Com a prenda que ali nos trouxera já trocada e um saquinho de compras na mão (o truque do elevador da loja tem este problema: obriga-nos a comprar alguma coisa para não ficarmos com a consciência pesada), lá saímos para o prazer do silêncio do -3. Enquanto procurávamos o carro, perdido numa grelha de números e letras que não servem de nada se não tivermos decorado o sítio onde estacionáramos o bólide, decidi parar a família a um canto. Todos — até o bebé de nove meses — pusemos a mão direita no ar e jurámos solenemente que ali não voltaríamos até passar o Natal. O castigo de falhar o juramento? Passar mais umas horas naquele inferno...

Marco Neves | Tradutor e professor. Escreve sobre línguas, livros e outras viagens no blogue Certas Palavras. O seu quinto livro é Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português.