Não é preciso lembrar Saramago. Lembramo-nos de alguém de quem nos esquecemos, mas não é o seu caso. José Saramago, a sua figura e a sua obra, encontram-se de tal modo presentes na nossa vida que dialogamos com ele permanentemente. Entramos em qualquer livraria portuguesa e percebemos que a sua obra ocupa o lugar significativo de quem ficará entre nós para sempre. Nas capas dos seus livros, cujos títulos foram desenhados pelas mãos dos seus parceiros e amigos, está inscrita a imagem da comunhão entre pessoas como só a Literatura alcança. Pelo meu lado, por exemplo, gostei de colaborar na escrita dos títulos. Sempre com a ideia de que Saramago se encontra aqui, sentado em frente.
Quando fui convidada para desenhar as letras de um dos livros de José Saramago, já havia alguns títulos preenchidos. Nessa altura ia ser transmitido o filme do realizador canadiano Denis Villeneuve feito a partir de O Homem Duplicado. Isso fez-me lembrar a história de Tertuliano Máximo Afonso, a personagem que transportava consigo um nome tão impressivo e, no entanto, servia para incarnar a ideia da escassez da individualidade humana. Uma das epígrafes do livro é, precisamente, uma frase de Sterne – “Acredito sinceramente ter interceptado muitos pensamentos que os céus destinavam a outro homem”. Assim comecei a desenhar as letras de O Homem Duplicado.
As últimas obras de Saramago desenvolvem-se em torno de parábolas sobre o destino e a natureza humana. É o que se passa com Todos os Nomes, As Intermitências da Morte ou Caim, os seu último livro. O Homem Duplicado faz parte desse naipe e no entanto está cheio de vida íntima e quotidiana. Talvez essa associação ambivalente, em que a questão da individualidade é posta em causa, como se um Criador nos tivesse negligenciado, e nos tivesse repetido sem fim, sendo cada um de nós apenas um entre a multidão, em contraposição ao desejo que cada um, pelo contrário, tem de ser reconhecido como singular e único, me tenha impressionado de modo muito especial.
Tive uma ligação muito forte a José Saramago. Fizemos inúmeras viagens, participámos de acontecimentos em conjunto, falámos de livros em público, vivemos momentos inesquecíveis em casa de amigos. Uma vida inteira que fica guardada ao lado dos livros. Eu estava em Frankfurt em 1998. Assisti a um colóquio, na noite anterior, em que o jornalista que dirigia a mesa havia sido muito contundente com o facto de Saramago ser comunista. Estávamos na hora da mudança do Leste Europeu e a linha dominante era anti-comunista. Saramago defendeu a sua posição com frontalidade, mas não saiu de forma airosa. Sabíamos todos que no dia seguinte seria conhecido o nome do laureado pelo Nobel. Quando saímos na direcção do hotel, íamos silenciosos. No dia seguinte, Saramago abalava na direcção do aeroporto. Eu tinha o coração apertado, porque no ano anterior, a roleta russa tinha pendido para Dario Fo. Mas ao fim da manhã, na Feira, surgiu o editor Hermínio Monteiro, que nos disse, com rosto alumbrado – o Saramago ganhou o Nobel. O stand estava cheio de escritores portugueses. Foram-no buscar ao aeroporto. Ele regressou à Feira. Foi um dos momentos mais felizes da nossa vida colectiva.
Para os portugueses veio tornar visível a importância dos livros e da Literatura. Junto dos denegridores de opinião, veio dizer que o que constava, que a Literatura portuguesa não tinha reconhecimento algum, não era verdade. Junto do público, veio dizer que os livros têm um valor não só íntimo e pessoal, mas também transaccionável, o que é importante num país que só pensa em futebol. Para o exterior veio chamar a atenção para toda uma Literatura original que até então ainda não tinha tido a sorte de ganhar um Nobel de Literatura.
Veja aqui o trabalho especial que o SAPO24 preparou para assinalar os 20 anos do Nobel
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