A eleição do Presidente, na próxima terça-feira, não será certamente o fim de um período dos mais conturbados na vida dos Estados Unidos. Vem em crescendo há uns dois anos e, ao que tudo indica, pode até piorar depois de 3 de Novembro.
No topo deste clima está, certamente, um presidente que tem como discurso dividir as pessoas, agredir verbalmente os inimigos e incitar os favoráveis a “estar preparados” para o que der e vier. Mas são os próprios cidadãos que estão cada vez mais agressivos, por razões justas ou injustas, como se já não houvesse um sentimento de pertença nacional. A venda de armas e munições atingiu novos recordes, num país onde há 120 armas por cada 100 pessoas, distribuídas desproporcionalmente (40%, segundo uma estimativa). Com tantas armas na mão de civis, não surpreende que as polícias andem fortemente armadas e atirem a torto e a direito, literalmente. Só este ano foram mortos 721 civis, dos quais 142 negros. A partir do sufocamento de George Floyd, a 20 de Maio deste ano, o movimento Black Lives Matter tem feito manifestações diárias em dezenas de cidades. Algumas são violentas, e grupos de supremacistas brancos assumem o contra-ataque, por vezes sob o olhar condescendente da polícia. Mas o caso Floyd calhou ser mais mediático; há dezenas de outros casos relatados pela media internacional. Kyle Rittenhouse, um miúdo branco que matou duas pessoas numa dessas contra-manifestações, tem sido tratado como um herói pela ultra-direita e já tem um fundo de milhares de dólares para ajudar a sua defesa.
Esta segunda-feira, em Filadélfia, a polícia abateu um negro com distúrbios mentais, e desde então a cidade vive um estado de sítio, com recolher obrigatório, grupos armados e manifestantes em constante confronto.
Os casos são tantos e os incidentes tão frequentes, que seria impossível ser exaustivo. Destaca-se, sem dúvida, a tentativa de raptar e “julgar” a governadora democrata do Michigan, Gretchen Whitmer, por um grupo de terroristas supremacistas, ” Michigan United for Liberty” , inspirado pelos ataques constantes que Trump lhe dirige, por ela insistir em medidas anti-pandemia.
Além deste clima de agitação constante, há a eleição, com todas as complicações e litígios que já está a provocar. Como é sabido, o país que vende democracia ao mundo, não tem ele próprio um sistema democrático muito convincente. Em processos “normais”, como o nosso, as pessoas votam no mesmo dia, nas 24 horas anteriores não há propaganda eleitoral, o chamado “dia de reflexão, e no dia seguinte conhece-se o resultado. Nos Estados Unidos há 48 eleições separadas em cada um dos Estados, com regras que variam muito. Em quase todos, pode votar-se com antecedência; noutros pelo correio, ou ainda em urnas especiais colocadas na rua; noutros ainda a contagem é válida até três, dias, oito ou nove dias depois da data. Em alguns, o voto pelo correio tem de ir em dois envelopes, noutros num envelope especial. Há Estados com voto electrónico, uns com recibo em papel, outros não. Resumindo, as regras são tantas e tão díspares que é impossível ter um número certo no dia 4 de Novembro. Em princípio – e isto é o resultado de estudos feitos ao longo dos anos – os democratas têm mais tendência para votar pelo correio e os republicanos pessoalmente. Neste ano em que a pandemia não só existe como foi politizada, estas tendências exacerbam-se. O Presidente há meses que critica o processo de voto pelo correio, já a preparar-se para, caso perca, ter argumentos para recorrer aos tribunais. Aliás, neste momento já decorrem mais de 300 processos em tribunais estaduais para conseguir várias variações da forma de votar. Na Califórnia, um grupo republicano colocou urnas na rua para receber votos por conta própria, o que, evidentemente, é ilegal, e recusa-se a retirá-las.
Cada Estado tem um Governador, uma Assembleia Legislativa e um Tribunal Superior. Em muitos, o Governador é de um partido, a Assembleia tem maioria da oposição, e os membros do Tribunal podem ser maioritariamente de um ou de outro. Isto tem levado a ordens e contra ordens entre os três poderes; basicamente os republicanos estão interessados em tornar a votação difícil para as minorias étnicas, que consideram desfavoráveis, enquanto os democratas querem o contrário.
Uma situação surreal é o facto de as pessoas poderem ir votar armadas, o que também é uma forma de assustar e pressionar. Segundo a revista online “Huffington Post” [HuffPost] “existe um esforço indisfarçável de intimidar os eleitores, especialmente os democratas, quando se apresentarem nas mesas de voto. Grupos de extrema direita estão a organizar-se para aparecer armados, o que os delegados nas mesas de voto receiam possa criar um ambiente perigoso. (...) Só uma dúzia de Estados proíbem explicitamente armas escondidas (“hidden carry”) ou à mostra (“open carry”) nas urnas.”
Outra faceta desta guerra de nervos é a comunicação. Não estamos a falar dos orgãos de comunicação social, que são agentes normais de influência numa eleição, nos Estados Unidos. Também não estamos a referir-nos à guerra nas redes sociais, quer seja através de publicidade paga, quer de desinformação disfarçada; acontece ainda a componente particularmente desorientadora dos telefonemas e dos emails. As pessoas recebem constantemente chamadas e mensagens incentivadoras para votar ou com informações erradas sobre os oponentes. Como as redes sociais são mais ou menos censuradas (não o suficiente, mas pelo menos nos aspectos mais extremos) os adversários usam o email, que é um meio sem qualquer controlo.
Para se ter uma ideia das barbaridades que o sistema permite, veja-se a investigação da revista “Vice” segundo a qual milhares de pessoas receberam uma mensagem que dizia: “Joe Biden é a favor de tratamentos de mudança de sexo para crianças de oito a 10 anos.” Em Setembro, segundo a empresa Robokiller foram enviadas 2,6 mil milhões de mensagens políticas, um aumento de 400% em relação ao mês de Junho. A empresa estima que neste final de campanha sejam enviadas mais de três mil milhões.
Tudo isto, por muito perturbador que seja, não parece uma guerra civil, no sentido que habitualmente atribuímos ao termo: exércitos inimigos a enfrentarem-se em várias batalhas. A guerra civil moderna é precedida por um período de insurreição, com conflitos constantes em locais diferentes, entre agitadores que agem violentamente com um objectivo político. Há analistas que consideram que já se vive neste clima, usando como referência a agência que mais percebe do assunto, a CIA. Segundo o manual da CIA, “Um conflicto de pré-insurreição é difícil de detectar porque a maioria das actividades são subterrâneas e ainda não se vê violência nas ruas. Além disso, as acções abertas podem facilmente ser consideradas como actividade política não violenta. Durante este estágio, o movimento insurrecional começa a organizar-se; surgem os líderes, e os insurgentes definem as suas queixas e uma identidade de grupo, começam a recrutar e treinar novos membros e a armazenar armas e abastecimentos.”
É a situação em que o país se encontra. Quanto ao futuro, isto é, os próximos dias e os seguintes, no período pós-eleitoral, as perspectivas não são melhores, antes pelo contrário. Ron Suskind, do “The New York Times” inquiriu durante meses uma dúzia de funcionários políticos da Casa Branca sobre como projectam a situação a partir de 4 de Novembro. Segundo lhe disseram, sob anonimato, por razões óbvias, estão preocupados com a possibilidade do Presidente usar os seus poderes para se manter no posto ou criar uma situação favorável para negociar a sua saída da Casa Branca. Também os preocupa a intervenção subreptícia de adversários estrangeiros para promover o caos, aumentar as divisões e minar o processo democrático.
“É provável que as perturbações comecem logo na manhã do dia da eleição, na costa Leste, onde as mesas de voto abrem primeiro. (Os E.U.A. têm cinco fusos horários) Provavelmente em Miami e Filadélfia (já em brasa por causa de mais um homicídio policial). Os grandes Estados onde os resultados são menos previsíveis porque indecisos, são também bons candidatos. Podem ser acções violentas ou não violentas, começadas por qualquer pessoa, ou algo planeado e executado por certas organizações, quase todas da extrema-direita, que adoram Trump. Activistas podem fazer protestos em mesas muito concorridas, com longas filas de espera. As polícias locais já estão preparadas para todo o tipo de incidentes nas mesas, incluindo a possibilidade de tiroteios. Se algumas destas situações ocorrerem, a comunicação social vai colocá-las nos noticiários da manhã e as notícias espalhar-se-ão rapidamente, aumentando a tensão nas mesas que ainda estarão abertas noutros Estados.
Também é provável que grupos de esquerda se envolvam. São menos estruturados, funcionam mais por identidade ideológica. Se as ruas se encherem de pessoas irritadas, é fácil que instigadores transformem um grupo de manifestantes numa turba-multa.”
Bernard Avishai , no “The New Yorker”, conta os trabalhos de um grupo chamado Bright Line Watch, da Universidade de Rochester, que mandou um inquérito a dez mil analistas políticos académicos. Responderam cerca de 700 especialistas de diversas áreas. O grupo encomendou também um inquérito a 27 mil cidadãos, uma amostra representativa da população dos Estados. Todas as respostas foram divididas entre “aprovadores de Trump” e “desaprovadores” – portanto independentemente da sua filiação política.
O grupo examinou as respostas para avaliar até que ponto as alegações (de eventual fraude eleitoral) de Trump são credíveis, e o que é que as pessoas estão preparadas para fazer se a situação der para o torto. Foram levantados 28 cenários, desde o momento em que a eleição termina até à Câmara de Representantes declarar o vencedor. As perguntas eram muitas e as repostas também, mas vale a pena salientar que apenas 44% dos trumpistas estão dispostos a considerar legítima uma vitória de Biden; a razão sendo a fraude eleitoral e essa mancha perseguindo o governo do novo Presidente.
Um resultado assustador surgiu com a resposta à pergunta “justifica-se recorrer à violência em geral, ou especificamente no caso do partido oposto ganhar as eleições?”. 26% dos apoiantes de Trump e 21% dos bidenistas disseram que eram contra o uso de violência se perdessem. Mas, no caso do outro campo iniciar a violência, 46% dos trumpistas e 36% dos bidenistas consideram que se justifica retaliar.
Em geral, pode dizer-se que os inquiridos, se não querem perturbações e violência, também não estão dispostos a aceitar pacificamente os resultados, caso considerem que se justifica. Que justificação poderá ser? Fraude eleitoral? E como se mede?
Até lá, só nos resta esperar. Prognósticos, nem depois do dia 4 de Novembro.
Comentários