Ali em meados dos Anos 90, o meu pai trouxe para casa uma daquelas antenas parabólicas que iam invadindo os telhados portugueses.
Nessa longa travessia que era a adolescência, eu queria muito viajar pelo mundo — não sendo possível, a tal antena foi a maneira de trazer o mundo até casa. Comecei a ver canais espalhados pelo planeta, desde emocionantes telenovelas sauditas (não percebia o que diziam, mas sabia perfeitamente o que estava a acontecer: o cafajeste do cunhado andava a trair a irmã do herói da trama — e ainda por cima ficara com as acções da empresa!), passando pelos telejornais vietnamitas (estranhamente, ignoravam as novidades do futebol nacional) e terminando num belo filme da Costa Rica. Cheguei até a passar umas belas tardes a ver séries da televisão catalã, que me intrigava desde que vira a Cerimónia de Abertura dos Jogos Olímpicos de Barcelona (ou, como se dizia no tal canal, Jocs Olímpics de Barcelona).
A grande revelação aconteceu, no entanto, no dia em que calhei parar o furioso zapping num canal polaco. Estava a dar uma telenovela brasileira — traduzida para polaco, pois então. Só que a tradução, Deus meu, era... Enfim, era peculiar. Nada de legendas... Era uma espécie de dobragem.
Explico: havia uma só voz (masculina) que traduzia as falas das personagens todas! Se não acredita no que lhe digo, veja esta cena do filme Notting Hill:
Foi uma descoberta e tanto.
Um dia, quando calhou encontrar um grupo de polacos — por acaso, em Barcelona —, perguntei-lhes: o que era aquilo? Porque não usavam um actor diferente para dizer as falas de cada personagem? E porque não sincronizavam as vozes com as bocas?
Olharam-me intrigados: por que carga de água haviam de fazer tal coisa?
Na verdade, a tradução audiovisual faz-se de várias maneiras. Os três tipos principais são a legendagem, tão nossa conhecida, a dobragem, que vemos nos desenhos animados portugueses e detestamos nos filmes e séries para adultos, e o voice-over, que encontramos nos documentários.
A legendagem tem limitações e regras mais apertadas do que nos apercebemos no dia-a-dia: dificilmente tudo o que se diz num filme cabe em duas linhas, que têm de ficar no ar o tempo suficiente para serem lidas.
Já a dobragem exige uma coordenação entre texto e imagem que dá bastante trabalho ao tradutor e ao actor.
Quanto ao voice-over, não só deixa a voz original por baixo, como implica que a tradução comece um pouco depois da fala original, para que não pareça que a voz-off está a inventar uma tradução (o nosso cérebro é muito desconfiado).
Como sabemos, a distribuição destas três técnicas de tradução pelo material audiovisual ao dispor dos espectadores varia muito de cultura para cultura (basta ligar a televisão num hotel espanhol). Se Portugal legenda quase tudo, Espanha adora dobrar. Abundam explicações simplistas, mas as razões são complexas: desde opções políticas a questões económicas relativas ao preço de cada tipo de tradução, os vários países fizeram o seu percurso e acabaram com um tipo de tradução predominante em cada área. A Polónia e uns quantos outros países desembocaram numa situação em que os espectadores estão habituados a ouvir uma só voz a traduzir o que está a ser dito.
Para nós é estranhíssimo, mas para um polaco o voice-over é uma forma perfeitamente natural de traduzir um filme ou uma série. Se pensarmos bem, nós vemos um documentário sem notar que aquele tipo de tradução é bem diferente das dobragens dos desenhos animados. É mesmo uma questão de hábito...
Tendemos a achar que a maneira como as coisas se fazem na nossa terra é a única ou a mais natural. Uma das grandes vantagens de viajar é perceber como estamos errados: a Humanidade arranja sempre muitas maneiras de fazer a mesma coisa. Até o próprio acto de viajar varia de cultura para cultura, de terra para terra, de rua para rua, de casa para casa: na minha casa, passeávamos de carro, é certo, mas também havia dias em que viajávamos a bordo de uma antena parabólica...
Marco Neves | É tradutor na Eurologos e professor na FCSH/NOVA. Escreve sobre línguas e outras viagens no blogue Certas Palavras. É autor da Gramática para Todos — O Português na Ponta da Língua.
Comentários